segunda-feira, 30 de outubro de 2017


Porquê Portugal?

de
Gerardo Schnell–Medina

António pergunta-me, segurando uma chave inglesa muito oleosa na mão: “Porquê Portugal? Olha, já tens 62 anos, porque estás aqui e não na América do Sul ou no México? Lugares por onde andaste por mais de quatro décadas. Estás em fuga de quê ou de quem? Dizes-me que trabalhavas como vice-presidente num banco de investimento internacional, que eras um homem de peso nos negócios de imóveis comerciais, e que tens uma moradia tranquila e bonita no Arizona. Além disso, nunca paras de falar…blá, blá, blá…do Arizona, do México e da América do Sul. Porque motivos andas por aqui, deste lado do Atlântico, tentando falar um idioma que nem sequer pronuncias bem por causa desse maldito sotaque Mexicano? Estás longe, muito longe dos teus entes queridos e de tudo o que é teu.”

“Ó meu querido amigo António, estou aqui porque…” A interromper-me, o António disse-me: “Gerardo, ou tu és um maluco estilo Ricardo Salgado do Banco Espírito Santo, ou tu és um louco como esse cantor dos anos 80, António Variações, que não era nada mais do que um “hippie”! Que se passa, por que razão estás aqui? Porquê Portugal? Estás em fuga de quem ou do quê?”  

“Querido amigo António, estou aqui porque…” A interromper-me, e agitando a chave inglesa de maneira ameaçadora, António disse-me: “Eu já sei porque estás aqui. Viste pela TV que a taxa de natalidade é muito baixa e queres dar alguma ‘ajudinha’ às nossas lindas mulheres para cumprirem as suas responsabilidades patrióticas! És pior do que eu imaginei…um verdadeiro sem vergonha!” Para enfatizar a sua ideia, ele aproximou-me, e brandiu a chave inglesa em direção a mim. Levantou a voz e repetiu: “És ou não és um sem vergonha?”

“Acalma-te, acalma-te, digo-te que não, não estou aqui para dar força à pátria…” A interromper-me, ele disse-me: “Já sei, com um nome como o teu, ‘Schnell – Medina’, deves ser ou um alemão que quer vender-nos mais submarinos fora das nossas possibilidades económicas ou deves ser um espanhol que quer roubar-nos mais território nacional ao estilo da ‘diplomacia’ de Olivença a que eles já nomearam ‘Olivenca’! Sabes? O Turismo Espanhol, nas suas promoções turísticas, tem-na designado como uma das sete maravilhas de Espanha, pela presença da igreja. Mas o pior é que a igreja é portuguesa...é nossa…uns verdadeiros sem vergonha!”. Com a cara coberta de suor e óleo, interrogou-me de novo: “Amigo Gerardo, és ou não és um ladrão?”

“António, não, não estou aqui para roubar…” A interromper-me, disse-me: “Então, que fazes por cá? Diz, porquê Portugal? Tem tomates homem, dá-me uma resposta direta!”, disse-me ele enquanto atirava o cigarro para o chão da pequena oficina mecânica, apagando-o com o seu sapato muito gasto.  

“Amigo, estou aqui para…” A interromper-me, disse-me: “Gerardo, eu vi nos alforjes da tua bicicleta um exemplar de uma tal revista chamada Wine Connoisseur. Tu és um daqueles autores miseráveis que andam em busca de «uma experiência pouco conhecida» para se envolverem numa história fabulosa para vender ao New York Times Travel Section? És, não és? Hem? Dentro de dois anos vamos ter uma praga de turistas aqui na nossa região em busca do «autêntico Portugal»? É isso, não é, Gerardo? Não estejas com rodeios, diz-me!”

“Não, não sou um escritor de tour…” Interrompendo-me, novamente, disse-me que já era tarde e que seria melhor fechar a oficina e voltarmos no dia seguinte. Àquela hora, o DHL Express já não ia entregar as engrenagens para a minha bicicleta de marca Bicileyca (bici). Aquela linda máquina tinha avariado mesmo ali, em São Teotónio, Alentejo, enquanto percorríamos os duzentos e cinquenta quilómetros da Rota Vicentina.

“Anda!” disse-me António. “A minha mulher já tem preparadas umas boas doses de lombo de porco, batatas fritas, pão e um bom vinho caseiro. Tem de te engordar. És mais magro do que um pau de virar tripas. Ora bem, tal como já fizeste estas duas semanas, podes dormir no quarto do nosso filho que emigrou para o México. Ele faz parte desta Permanent Trade Delegation organizada pelo Ministro da Economia, António Pires de Lima. É, francamente, um disparate, isso de «Permanent Trade Delegation»; o que é isso, o nosso ministro já não sabe falar em português? O nosso filho está orgulhoso de ser representante do Alentejo. Mas já não conheço este rapaz, mudou tanto depois de ir para Lisboa tirar o mestrado em Economia, na Universidade Nova. Digo-te que estes economistas são uma desgraça! Agora, o nosso primeiro-ministro é um deles. Era bem melhor quando o nosso filho ainda estudava na Universidade de Évora, cá no Alentejo. Pelo menos, tínhamos a tia Maria Inês para orientá-lo e manter-nos informados. Mas, em Lisboa, não sei que ideias os professores da Nova lhe meteram na cabeça!”

“Gerardo, eu não sei porque tens de viajar com a tua bici Mexicana por todo o lado. Seria muito mais fácil e barato se, simplesmente, alugasses cá uma bici de produção nacional portuguesa. Importar uma bici só para passar três meses no Algarve e Alentejo não tem pés nem cabeça! Espero que esta maldita peça de reposição para a tua «bicicleta prima donna Mexicana» chegue amanhã. Porque, lá em casa, depois destas duas semanas, já estamos fartos de ouvir as tuas histórias sobre as tuas fabulosas proezas com ela na América Latina!”

“Não! Não estou aqui para vos contar nad…” Interrompeu-me, o ruído estrondoso da porta da oficina ao ser fechada por António. Eu ficava ansioso a observar a minha bici a acumular poeira durante todas estas duas semanas à espera de uma peça vinda da sua pátria. 

O António já estava a dez passos na direção da casa. O seu grito tirou-me do meu estado meio sonhador por ter visto a minha querida encurralada numa oficina tão longe da sua terra natal. “Vem, vem, Gerardo…a tua casa espera-te. Temos uns «comes e bebes» deliciosos para te encher a barriga. Deixa de olhar «a tua» como se fosse a tua namorada!”

“Não, não estou apaixonado pela…” Zás! Uma pancada amigável, mas muito forte, nas minhas costas da parte do meu amigo-mecânico, António, deixou-me ofegante ao ser interrompido a meia frase. Ele disse-me: “Anda, aqui não tens de nos explicar nada!”

Na cama, à noite, o António disse à sua mulher: “Pergunto-me quem será esse fulano, esse tal Gerardo? Porque é que está aqui? Ele está em fuga de alguém ou de alguma coisa. Porquê Portugal?” A mulher disse-lhe: “Ah, meu querido António, de vez em quando pareces um simples ingénuo. O Gerardo está a mentir com quantos dentes tem na boca. Não há peça de reposição a caminho do México! Ele só quer um «oitavo» de paz para o seu labirinto de solidão. Mas, pelo menos, ele paga-nos a renda a tempo, isso é melhor do que os nossos políticos-ladrões de Lisboa. São verdadeiros sem vergonhas na maneira como nos tratam. Bem, Tó vira-te para lá e dorme!”


Fim


Susie Nogales

de
Gerardo Schnell–Medina

Dizíamos que era «o voo dos heróis» porque nós tivemos que levantar de madrugada, conduzir até ao aeroporto Jorge Newbery, quase no centro de Buenos Aires, e descolar às sete da manhã. Voámos contra ventos traiçoeiros, vindos dos colossais Andes, para uma aterragem na pequena aldeia de San Martin de los Andes, junta às montanhas. A pista era do tamanho de um campo de futebol geralmente coberta por nuvens. As duas horas de voo eram uma eternidade enquanto rezávamos para que esta viagem não fosse para nos levar para «o Céu». Eu pensava em todas estas parvoíces ao sair da nossa casa, fria e vazia, no subúrbio Nordelta-Tigre a 20 quilómetros do aeroporto.

Não havia fila na bomba de gasolina Shell Petrol ao lado da autoestrada Ramal Tigre e desta vez o empregado aceitou-me o cartão de crédito. Com um cordial “obrigado” ao empregado, no meu espanhol de sotaque Italiano de Buenos Aires, saí do posto de gasolina e voltei à autoestrada. Ouvia na rádio Los Fabulosos Cadillacs, a nossa banda de rock de referência na Argentina. Apesar de terem ganho o Latin Grammy Award, em 1998, eles continuavam a ser muito irreverentes e engraçados. Cheguei ao Newbery «a horas» pela primeira vez na minha vida profissional. Tive tempo para beber um «submarino» antes de embarcar no pequeno avião. «O submarino» é uma das pequenas delícias que faz de Buenos Aires uma delícia no dia-a-dia. Consiste em duas doces barras de chocolate feitas de cacau Amazónico servidas ao lado de um grande copo de leite quente, quase escaldante. Mete-se os submarinos de chocolate no mar de leite e mexem-se até se liquefazerem numa confeção divina para as frias e sombrias manhãs desta grande cidade portuária.

Comprei um exemplar da revista Contratiempo no quiosque de um Boliviano de cara lúgubre, “deve ser um imigrante que quase morre de fome”, pensei eu. Ao pôr o troco de dois pesos na minha bolsa, virei-me na direção da rampa de embarque e cruzei-me com o «Steven Spielberg». Ele disse-me: “Ah, és tu «Gabo», andas sempre com uma revista literária na mão!” Essa piada, do meu amigo de longa data, provocou uns sorrisos cúmplices entre nós. Éramos uma equipa de cinco funcionários do Ministério do Turismo Nacional da Argentina. Três homens e duas mulheres em busca do paraíso Argentino para rodar filmes publicitários para atrair os turistas internacionais ao nosso país e, claro, os seus dólares, os seus euros e os seus ienes chineses. Nessa altura já tínhamos trabalhado juntos por quase duas décadas, todos nós tínhamos entre 50 e 60 anos. Trabalhávamos como burros de carga, era trabalho duro, mas dava-nos também muita autonomia. Não tínhamos de nos apresentar no abismal escritório do ministério «a horas» todos os dias. Esperávamos aguentar só mais uns anos para atingir a idade da reforma. Mas, ao fim do dia, nenhum de nós sabia como iria sobreviver com as pensões da Caixa Geral de Aposentações. É que, os fundos de investimento na caixa nacional de pensões para a velhice eram muitos reduzidos devido aos saqueios constantes por parte dos sucessivos governos.

Ao entrar no corredor do avião, cumprimentámos os nossos três restantes colegas de equipa pelas alcunhas, «Brigitte Bardot, Cheryl Tiegs e Leica». Só entre nós, dentro da equipa, usávamos estas alcunhas. Quando era criança, a Brigitte queria ser uma atriz de alcance internacional, a Cheryl uma modelo nas passarelas de Nova Iorque e o Leica um fotógrafo famoso do estilo de Alfred Stieglitz. Se se acrescentar um realizador de filmes de Hollywood, o «Steven Spielberg» e eu o «Gabriel Garcia Márquez», ou simplesmente o «Gabo», um aspirante a autor, estará completa a nossa equipa. Eu, encarreguei-me de escrever os guiões para estes filmes promocionais turísticos que eram piores do que os filmes de categoria B ou de um «spaghetti Western». Outra responsabilidade minha era escrever todos os anos um relatório eloquente capaz de justificar a existência da nossa equipa face aos constantes cortes orçamentais do governo ameaçado pelo FMI, o World Bank e os bancos internacionais. Mas, o pior, era que o Steven, um doutorado em artes cinematográficas pela prestigiada Universidade de Buenos Aires, estava reduzido a converter-se num político para fazer lobby junto do senhor Ministro para a nossa própria sobrevivência. Apesar disso, estávamos contentes por ter tais empregos num país com taxas de desemprego acima de 30%. Era muito melhor para nós, artistas frustrados, ter uma vida profissional num ministério em vez de viver abaixo do limiar da pobreza como metade dos nossos compatriotas.

O melhor destas viagens a diferentes regiões do país era que o nosso ministério pagava-nos uns «per diem» em ajudas de custo. Para poupar dinheiro as duas mulheres arrendavam sempre um só quarto, com uma pequena cozinha, num hotel. Nós, os três homens, levávamos sempre os nossos sacos-cama e dormíamos no chão do quarto delas. Cozinhávamos no quarto qualquer coisa comprada nos supermercados locais. O único aborrecimento era, de manhã, ter de esperar que a Cheryl e a Brigitte se maquilhassem. Nós, os homens, dizíamos-lhes sempre: “Apressem-se, despachem-se! Olhem para nós, os vossos homens, somos tão bonitinhos que não necessitamos maquilhar-nos”. Elas respondiam: “Calem-se, calem-se feios, feíssimos e tenham um bocadinho de paciência com as vossas rainhas!”

Ao fim de uma semana de filmagem, num lugar remoto da república, dividíamos todos os custos por cinco, pagávamos o hotel, e metíamos o extra «por dia» nos nossos bolsos para levar para casa. Apesar de sermos profissionais de «a imaginária e cada vez mais pequena classe média da Argentina» este dinheiro era quase igual aos nossos salários mensais. O extra ajudava-nos a alimentar e vestir as nossas famílias. A única regra existente, desta convivência entre nós os cinco, era a de não comer feijão. Descobrimos, há 15 anos, que o Leica era capaz de produzir mais «metano» do que todos os campos de gás natural da Venezuela.

Mas esta viagem a San Martin era diferente; só íamos filmar as insípidas promoções turísticas por dois dias. Nos cinco dias restantes íamos gravar os cenários no campo do argumento cinematográfico que eu desenvolvi na minha pequena novela. Tal novela teve uma tiragem de trezentos exemplares, dos quais, só metade fora vendida. Os restantes jazem na garagem do meu sogro, em Rosário, como num cemitério de livros. Os cenários do campo eram a única parte que nos faltava para ter uma produção cinematográfica completa. Há dois anos que juntávamos todas as nossas poupanças e até pedíamos dinheiro emprestado aos nossos parentes. Lançámos a nossa clandestina empresa de produção cinematográfica, nomeada Southern Cross Productions, aos fins-de-semana, utilizando todo o equipamento de produção do ministério!

A irmã de Cheryl era uma beleza quarentona que dava aulas de Tango aos estrangeiros. Ela apaixonou-se por um dos seus alunos, um ator de 50 anos de Hollywood, o Robert Duval, que mantinha uma casa de verão em Buenos Aires. A irmã, bem armada com os seus poderes de persuasão e encanto, tinha vendido os direitos de distribuição da nossa produção cinematográfica ao senhor Duval por $200 000 dólares americanos. Mas nós ficaríamos também com 5% sobre o preço dos bilhetes vendidos. Ah, dólares americanos! Os que o nosso próprio governo não quis que nós tivéssemos. Era uma fortuna para cambiar por pesos argentinos no mercado negro. Nós os cinco cantávamos repetidas vezes: “Vamos aposentar-nos cedo! Vamos a Hollywood!” Era realmente nada mais que um jogo muito arriscado, algo próprio de jovens e não de gente como nós, quase idosos. Mas tivemos que fazê-lo simplesmente para sobreviver. Com os $40 000 que Cheryl ia receber seria possível manter a sua querida mãe a fazer hemodiálise. Era uma vergonha, mas o SS Salud (Superintendência de Serviços de Saúde Nacional) já não contava com um orçamento suficiente para a hemodiálise e outros tratamentos dispendiosos.

Ora bem, fomos à procura dos nossos lugares no avião. Sempre como um realizador de Hollywood, o Steven, sentou-se, no lugar que dava para a janela e eu no que dava para o corredor. Meti o meu guião na bolsa do assento da frente. Mecanicamente, o Steven dobrou o seu jornal do dia, La Nación, e meteu-o na bolsa da frente. Dei uma vista de olhos ao jornal e notei, na capa dobrada, a data «15 de maio 1999» com a manchete «Jogos Pan Americanos Montreal, Canadá».

Após 20 minutos de voo tínhamos atingido a velocidade e a altitude de cruzeiro. O Steven desdobrou La Nación e colocou-o sobre a sua mesa desdobrável. Enquanto ele esfregava os olhos, fiquei chocado com a notícia em letras grandes «¡Viva a Mexicana. Viva México!» Tinha uma foto de uma bela mexicana, a Ana Gabriela Guevara Espinoza, com o rosto em esforço no final da corrida dos 400 metros nos Jogos Pan Americanos. Espontaneamente, comecei a balbuciar: “É a cara dela, é a Susie!”

O Steven deixou de esfregar os olhos, repôs os óculos num ápice, e olhou para mim por entre La Nación, com perplexidade. “Acalma-te Gabo, acalma-te, que se passa?” Apontei com o meu dedo a tremer para o título do jornal e disse-lhe: “A Espinoza, é ela, ó meu tolo Steven. Meu Deus! Não sabes o que significa isso?” Num piscar de olhos, imaginava a minha querida Susie a correr à minha frente desde a fronteira até à mansão dos seus pais em Nogales, Sonora, México. Gritei “É a Susie, é a Susie!” ao Steven e ao resto da nossa equipa, que então, me tinha rodeado. Eu dizia-lhes: “Sim, sim, a Susie tinha-se formado pela Católica, casado com um fulano de nome Guevara, tinha dado à luz!” O Steven não prestou atenção nenhuma ao meu estado histérico, mas leu, calmamente, o periódico em voz alta. Dizia que “a mãe da jovem atleta mexicana tinha morrido só uns anos antes dessa vitória.” Ao ouvir estas palavras destroçadoras, senti-me de luto e chorei baba e ranho. Num disparate momentâneo, refleti num refrão das missas da minha juventude “…bem-aventurados os que choram.” Pensei amargamente “Meu Deus nunca me vou recuperar desses catecismos da minha adolescência!”

Ao ver a cara de preocupação do meu amigo Leica, disse-lhe: “Dá-me um abraço meu amigo, acabei de perder o amor da minha vida.” Ele, apesar de virar os olhos na direção de Brigitte e Cheryl como se eu fosse um louco, abraçou-me com um amor fraternal. Era um abraço de amor e aceitação só possível a um neto de imigrantes italianos. (Dizemos na América do Sul que os argentinos são os únicos italianos que falam espanhol.)

Momentos depois, a hospedeira de bordo interrompia-nos para me estender uns lenços, tipo Kleenex, mas de má qualidade de produção nacional. Perguntou: “Que se passa? O senhor está bem? Pode voar? Se for uma emergência podemos desviar-nos e aterrar em Santa Rosa.” “Não, estou bem, obrigado, pois, pois é que sou guionista…é complicado…mas o meu amor foi enterrado de debaixo de uma árvore de Nogal.” A jovem hospedeira olhou-me, com incredulidade. Eu tratei de clarificar o assunto dizendo-lhe: “Às vezes as minhas protagonistas morrem logo que nascem. É difícil perder tantos seres queridos num prazo tão curto.”

Sem se meter mais no assunto, a hospedeira deitou o kleenex no saco do lixo e olhou-me. Com o rosto apenas a uma mão de distância da minha, ela ternamente disse: “Sim, sim amorzinho, às vezes as nossas vidas não são nada mais que uns filmes. Mas, filmes ou não, são as nossas realidades. Fecha os teus olhos coraçãozinho, dorme, dorme. Chegaremos a San Martin em menos de duas horas...dorme, dorme.”

E dormi, dormi profundamente, pela primeira vez em décadas sem sonhar com Susie a correr, à minha frente, durante a nossa fuga fronteiriça mexicana, muito longe de casa, nos subúrbios de Buenos Aires. Ao aterrarmos em San Martin, sem marcar golo no campo de futebol, alugámos uma pequena camioneta estilo TT de cinco lugares. Fomos diretamente para a pensão. Enquanto desfazíamos as malas e os sacos-cama o Steven foi ao supermercado para comprar fiambre, queijo, pão e um bom vinho para fazermos um piquenique. Por ser um lindo dia de verão, pusemos uma manta na relva, atrás da pensão, sentámo-nos, e começámos o nosso improvisado «almoço». Houve uma pausa na conversa…engoli em seco à espera.

Olhando-me com um olhar firme, Brigitte disse-me: “Gabo, diz-nos. O que se passou no avião?” Era mais uma ordem do que uma pergunta. Durante estas quase duas décadas de trabalho em equipa, ela tinha sido designada a psicóloga do grupo. Foi inútil tentar escapar à questão. Então, entre «comes e bebes», comecei a contar-lhes algo que nunca me tinha ocorrido contar a ninguém, especialmente à minha esposa, durante tantos anos juntos. Contei-lhes da minha juventude em Nogales, Arizona, que fazia fronteira com Nogales, México. (Nogal significa «nogueira» em espanhol.) Naquelas décadas de 50 e 60, entre as duas Nogales, não havia nenhuma fronteira em si. Era nada mais do que dois postos de controlo aduaneiro, um americano e o outro mexicano, separados por linhas pintadas no asfalto. Não havia nada de muros, metralhadoras, nem sistemas de segurança. Tanto as crianças mexicanas como as americanas jogavam o jogo da macaca entre as linhas pintadas na estrada.

Pois, eu continuava a contar-lhes que nos dias de independência das duas nações, 16 de setembro e 4 de julho, os desfiles e festivais passavam pelas ruas principais de ambos os lados da fronteira. Os dois povos celebravam juntos com fogos-de-artifício, bandas e danças. Além disso, nos dias de escola os jovens mexicanos cruzavam a fronteira a pé, levando as suas cestas de almoço, para assistirem às aulas nas nossas escolas e nos nossos colégios, que eram melhores do que os do México. Aos 6 anos, apaixonei-me pela Susie Bettencourt, a filha do presidente da câmara de Nogales, México. O seu nome, Susie, naqueles dias era muito comum entre as meninas mexicanas que queriam adotar um nome americano da moda. Quando ela tinha quatro anos, em 1957, o pai dela tinha-lhe dado o nome de «Susie» devido à canção popular “Wake up Little Susie”, dos Everly Brothers.

O meu pai era um pecuário americano com mais de 1 100 hectares perto da fronteira. Todos os outonos, costumava doar o bezerro mais gordo ao pai da Susie para um churrasco de paz entre as nossas duas famílias. Nas primaveras, para um churrasco na nossa casa, o senhor Bettencourt doava, ao meu pai, um peixe Jurel de Castilla geralmente a pesar mais de 40 quilos proveniente do Mar de Cortés no México. Vivíamos em paz nesses dias.

Lembro-me, com nitidez, de que estávamos a formarmo-nos pelo Nogales High School (Liceu de Nogales) na primavera de 1971. Na noite do baile de finalistas, cheguei no meu carro a casa dos Bettencourt no outro lado da fronteira. Jurei, solenemente, ao senhor Bettencourt que lhe levaria a sua filha de volta a casa antes da meia-noite. Passado este purgatório, a minha “Wake Up” e eu chegámos ao salão de baile, elegantemente vestidos, e começámos a dançar. Estivemos em êxtase a abraçar-nos hora após hora. Mas, de repente, o irmão da Susi, Hernán, apareceu a agitar as mãos freneticamente. “Gera, Gera! Vem, vem! O meu pai está zangado contigo, tens de devolver a Susie já a casa. Eles andam à tua procura!”

“Que parvoíce é essa, são as onze menos um quarto, temos todo o direito de nos divertir mais uma hora.” Hernán diz-me: “Não, não, não! Hoje é o primeiro dia da hora de verão, no México. Mas, aqui, no Arizona, vocês nunca adotaram essa mudança de hora. O teu relógio está uma hora atrasado. A polícia Sonorense anda à tua procura por ambos os lados da fronteira!” Fiquei desconfiado mas tive que obedecer ao Hernán.

“Vamos, vamos!” gritou Hernán. “O meu pai e a polícia já estão a caminho para recuperar a Susie.” “Bem”, disse eu. “Não sejas tão dramático. Entramos no meu carro e estaremos no México em menos de um minuto.” Hernán gritou: “Não, não! A polícia conhece o teu carro… estão a procurá-lo por toda a parte. É melhor corrermos!”

Então, a Susie tirou os seus saltos altos, deu-os ao Hernán para levá-los, levantou o seu vestido de gala até aos joelhos e correu. Corremos como o vento pelas ruas vazias e tranquilas em direção à fronteira. Nesse tempo, a fronteira, era nada mais do que uma cerca de três fios de arame farpado. Hernán levantou um fio com a mão que não segurava os saltos altos. Eu empurrei para baixo os outros dois fios com o meu sapato. Para meu grande espanto, Susie levantou o seu vestido de gala até à cintura, dobrou-o, com as mãos, e passou de modo limpo para o outro lado da fronteira! Fiquei espantado com tal vista, paralisado sem me mover. Hernán trouxe-me à realidade com uma pancada nas costas com os saltos altos e rosnou “Vamos! Vamos!”

Corremos os últimos cem metros pela rua acima até à mansão familiar. Susie, por ser a atleta estrela na corrida Junior Olympics do Liceu de Nogales chegou primeiro. Deixou cair o vestido, recolocou os seus sapatos de salto alto e afofou o seu penteado. Ao abrir o portão do jardim caminhámos casualmente até à porta principal. Hernán foi o primeiro a entrar em casa, deixando-nos sozinhos durante uns momentos.

“Susie, Susie, gostei muito da maneira como cruzaste a fronteira e correste até cá. Que pernas lindas tens. Quando quiseres voltar a fazê-lo, avisa-me!” “Eh, eh, eh! Tu és mesmo homem, meu amor. Cala-te! Nunca menciones isso a ninguém, especialmente aos meus pais!”

Íamos beijar-nos mas, quando os nossos lábios estavam a fazer-nos entrar no céu, a porta da casa abriu-se violentamente. A mãe gritou: “Susie, Susie! Entra, entra, são cinco para a meia-noite. O teu pai vai matar-te.” Susie, sem cerimónia, entrou e a porta fechou-se abruptamente na minha cara, quase a beliscar-me o nariz. Com desalento, desci os degraus da varanda e, mesmo ao entrar na rua, a porta abriu-se de novo. A mãe gritou: “Vem, vem cá jovem!” Totalmente desorientado, virei-me, subi os degraus, a mãe agarrou-me pela orelha a dirigiu-me até à cozinha.

Forçadamente, sentou-me numa cadeira à mesa, e com todas as luzes e candeeiros acesos, começou a interrogar-me. A Susie e o Hernán estavam aterrorizados, a tremer como varas verdes, por trás da mãe. “Que fizeste à minha filha?” “ Eu não fiz nada à…” Zás! Deu-me uma bofetada forte na cara. A Susie deixou sair um guincho ao ver a mãe bater-me. “Repito: Que fizeste com a minha princesa?” “Nada, Senhora, absolutamente nada!…dançámos e….” Zás! Outra bofetada na outra bochecha. A Susie estava a soluçar. “Manchaste a pureza da minha menina! Confessa! Admite! Ela chegou a casa ofegando, com as bochechas coradas, o penteado desfeito, os olhos a brilhar. Fizeste algo contra a honra da nossa família”.

“Não, não senhora ouça-me por favor. Esta noite o tempo estava tão agradável que decidimos dar um passeio até sua casa em vez de virmos de carro. Saímos do baile, cruzámos a ponte internacional da La Paz e Amistade, e ao virarmos para a sua rua, fizemos uma aposta: “Vai uma corrida? Vamos ver quem dos três chega primeiro!” A Susie estava a sorrir e a animar-me com gestos para que eu continuasse a fábula. “Estimada senhora, por isso, chegámos a sua casa tão desfeitos como os maratonistas!” A Susie e o Hernán estavam na sombra com sorrisos de orelha a orelha. Nesse mesmo momento a mãe virou-se na direção dos filhos. Eles fizeram extinguir de imediato os seus sorrisos. Ela interrogou-os: “Filhos, é verdade o que disse o Gerardo? Ele está a dizer a verdade, ou não? Digam-me agora!” Com vozes a cantar em uníssono, como um coro na missa, eles responderam: “Sim, mãe, sim é verdade o que diz o Gerardo.”

A aparência física da mãe descontraiu-se, virou-se para mim e disse: “Gerardo, desculpa-me, podes voltar para a tua casa agora. Nós encontramos a tua família na missa amanhã. Boa noite.” Abruptamente, a Susie disse-lhe: “Mãe, pelo menos, posso acompanhar o Gerardo até à rua para me despedir de maneira mais calma?” “Sim, minha filha.” Mais calmos e parcialmente escondidos atrás de uns arbustos, no jardim, tentámos, de novo, beijar-nos mas, de repente, o jardim ficou banhado por umas luzes brilhantes vindas da rua, acompanhadas por um barulho horrível. O primeiro a chegar foi o senhor Bettencourt, no seu Cadillac, seguido por dois carros da polícia que tinham trazido, de reboque desde a América, o meu carro!

O senhor desceu do seu carro e marchou diretamente para casa sem perceber que a Susie e eu estávamos lá. Deixou aberta a porta da casa enquanto Susie me dizia “tchau” e correu pelo lado da casa para entrar pela porta das empregadas da cozinha. Subi os degraus e parei, como se fosse um pecador frente a São Pedro na porta do céu. O senhor Bettencourt estava furioso a gritar com a sua mulher, explicando que já que a menina não tinha sido devolvida a casa a tempo, ele decidiu embargar o meu carro até que eu devolvesse a sua filha!

Nesse mesmo momento, a Susie e o Hernán saíram da cozinha e ao entrarem na sala de estar o pai ficou admirado. “Tu, Susie, estás aqui sã e salva? Estivemos à tua procura por toda a parte no Arizona!” “Sim pai, a tua princesa está aqui” e ela abraçou o pai. A mãe disse ao marido: “Acalma-te meu amor, ela chegou a casa há meia hora, exatamente quando faltavam cinco minutos para a meia-noite. Tudo está bem, está bem, não te preocupes.”

Mas o Senhor Bettencourt respondeu fortemente, quase a gritar à sua mulher, “Ah, não. É a senhora que está realmente equivocada, olha lá” orgulhosamente a mostrar o seu novo relógio eletrónico da marca Casio a todos. Para manter a paz, a senhora disse ao marido “deixa-me ver essa novidade que contém a última tecnologia igual aos da NASA que puseram o homem na lua.”  

A senhora, numa maneira suave, diplomática, para acalmar o marido explicou-lhe “Ah, meu amor, acho que à noite – quando mudaste a hora – tu avançaste a tua NASA duas horas em vez de só uma.” A cara do Senhor Bettencourt ruborizou-se ao ver o erro. Para salvar as aparências ele disse-lhe: “Tens toda a razão meu amor; vejo que nunca vou ser astronauta!” e abraçou a Susie com um abraço paternal.  

A mãe, ao notar que eu ainda estava lá fora, disse a Susie “Acompanha Gera até à rua e despacha-o. Gerardo, saudações aos teus pais, até amanhã na missa!” Estava completamente desnorteado, mas Susie saiu de casa, fechou a porta, pegou-me na mão e escoltou-me até à rua. Nessa altura, todos os agentes da polícia tinham abandonado esta situação familiar tão delicada. Encontrámos o meu carro a minha espera. Susie abriu-me a porta, sentou-me no carro e beijou-me apaixonadamente. “Sou tua, sou toda tua, toma-me, toma-me. Espero-te no parque, por baixo de «O Nogal» às duas horas da madrugada. Sou tua, toda tua!”

Às duas horas em ponto, estava a sentar-me no meu carro «não confiscado», quando vi a princesa mais bela do mundo a caminhar pelo parque perto da ponte de Paz e Amistade. Ao aproximar-se de «O Nogal», ela sorriu, timidamente. A luz da lua iluminou o delicado rosto da minha namorada. Fizemos amor, a primeira vez para nós os dois, com “O Nogal” por única testemunha.

Depois, abraçados no carro, ela contou-me uma espécie de chantagem, que ela tinha feito com o Hernán. Iria contar aos pais alguns detalhes comprometedores das atividades amorosas dele e da sua namorada, se ele não lhe oferecesse uns preservativos para nosso uso naquela noite. Ele deu-lhe dois preservativos e um abraço com umas palavras de ânimo “O amor é divino, irmã, o amor é divino.” Ela tinha-se escapado do seu quarto enquanto os seus pais roncavam em paz, por não terem deixado cair a honra da família. De madrugada, levei-a clandestinamente a sua casa, ela entrou na mansão sem acordar os pais e abriu a janela no segundo andar. Lançou-me um beijo de cinema com a mão. Eu estava no céu a virar-me para a fronteira.

Vi a minha querida Susie só mais duas vezes. A primeira vez, domingo, na missa. Enquanto os nossos pais se saudavam no adro da igreja, a Susie e eu beijávamo-nos castamente enquanto o Hernán trocava connosco um olhar cúmplice. Nesse mesmo dia, à tarde, teve lugar a nossa cerimónia de formatura do colégio. Mas, para nós, os dois apaixonados, com as nossas famílias ao nosso redor, ficámos com nada mais do que uns beijinhos nas bochechas e um abraço formal de acordo com a ocasião.

Dois dias depois, Hernán chegou a minha casa no lado americano da fronteira. Ele tinha a cara triste e os olhos inchados de chorar. “Vamos à colina no teu carro!” Fomos. Lá em cima, víamos as duas Nogales, uma americana e a outra mexicana. Ele disse-me: “Já saiu! Já saiu!” Respondi: “Quem saiu? Para onde?” Hernán disse-me: “Ela, ela, a minha irmã foi-se.” Eu balbuciei: “O que estás a dizer-me? Saiu, saiu? Por amor de Deus, diz-me o que se passou!”

“Pois, ninguém sabe nada disso, mas os meus pais levaram a Susie para a Cidade do México, matricularam-na na Universidade Católica e instalaram-na em casa da nossa tia para a proteger dos pecados da grande cidade.” “Hernán, deixa-te dessas brincadeiras de mau gosto. Não pode ser, esta história é de cinema, um filme de categoria B, não há nada de original nisto. Estamos no século XX. Que barbaridade é essa? Que tipo de pessoas são os teus pais, ditadores latinos? Diz-me, o que se passou?”

“Não, não Gerardo. Ouve-me! Ouve-me bem! Não é questão de cultura nem de nacionalidade. É questão da fronteira onde estamos. Todos os pais querem mandar os seus filhos para fora daqui para uma formação numa universidade de prestígio. Lembras-te de que eu andei com a Sharon Walker há dois anos, mas ao formarmo-nos no liceu, os pais dela mandaram-na para a Universidade de Stanford, na Califórnia? Não é questão de ser latino ou americano. Eu não quis matricular-me numa universidade mas o meu pai arranjou-me uma oportunidade na tropa. No mês que vem, vou ser cadete no Colégio Militar na Cidade do México. Daqui a uns anos posso chegar longe na minha carreira.”

Hernán disse-me: “Desculpa, mas já se faz tarde e tenho de me ir embora. A minha irmã queria que eu te desse isto.” Era nada mais que uma página dobrada de um caderno escolar em que ela tinha rabiscado umas linhas. “Meu amor, não foi por tua culpa que os meus pais me mandaram para fora. Eles nunca deixaram de roncar naquela noite! Mas eles insistiram e, se eu não fosse calmamente, eles estariam dispostos a forçar-me a entrar para um convento. Amo-te. Tu tiveste-me, sou tua mulher para a eternidade. Amo-te, querido, amo-te. Susie Nogles.”

Eu deixei cair a página e olhei para o Hernán. Ele abraçou-me, enquanto eu chorava, mas depois de uns minutos, entre lágrimas e ranho, eu disse-lhe: “Amigo, que mal me abraças em comparação com a tua irmã. E, além disso, és feio, feíssimo!” Nós rimos; batemos nas costas um do outro. Ele disse-me: “leva-me à fronteira, vou-me embora para casa. Leva-me para perto de onde estivemos naquela noite.”

Eu levei-o pelas ruas, passeámos pelo parque de “O Nogal”, ao lado da ponte Paz y Amistade, até chegarmos à fronteira. Hernán desceu do carro. Vi-o separar os arames farpados com as mãos e passar para o seu país, México. Ao vê-lo passar, tive uma visão da sua irmã, Susie, a passar mesmo por ali com o seu vestido de gala puxado para cima em volta da sua cintura, com as cuecas expostas à minha vista. “Que blasfémia, Gerardo!” Pensei eu “já não imaginas estas coisas agora!” Mas, como num ato de redenção, eu conduzi e parei debaixo de “O Nogal”. Vi, vividamente na minha memória, a luz da lua a iluminar a cara angélica da minha querida Susie.

Uns dias depois fiz as malas e saí de Nogales definitivamente a caminho de Phoenix, Arizona. Não quis ir para a tropa para ir para o Vietnam; então, respondi a um anúncio do Corpo de Paz. O recrutador perguntou-me: “que competências tens para seres voluntário humanitário?”. Eu disse-lhe: “Pois, sou bilingue, sei muito sobre agricultura e quero salvar o mundo do sofrimento.” Ele olhou para mim e disse-me: “Que tal, o Equador na América do Sul? Eles precisam de peritos em agricultura.” Eu fiz um aceno com a cabeça e ele continuou “Também lá poderás encontrar uma «Susie, Wake Up Little Susie» ele cantou-me a sorrir. Eu rangi os dentes pela coincidência da sua piada disparatada. Assinei o documento para aceitar a posição de três anos no Equador. Nunca imaginei nesse momento que ia viver e trabalhar naquele continente por mais de quatro décadas.

Anos depois, os meus pais reformaram-se e mudaram-se para Phoenix, porque a fronteira tinha sido «endurecida» pelas autoridades da agência de imigração americana. Escreveram-me para o Equador que tudo era muito mais violento agora nas duas Nogales e muito menos familiar. Pouco a pouco, as «cidades gémeas» assumiram o aspeto de uma terra de ninguém da guerra. Eu, de reminiscência, lembrava-me da minha juventude na fronteira, pensava na felicidade entre os dois povos e especialmente pensava em Susie e Hernán, ambos mandados para longe da fronteira.

Tudo isso, das duas Nogales, era como um filme trágico escrito a partir da fórmula do costume por um guionista de categoria B de Hollywood. Tão previsível, tão trágico…uma receita de bilheteira. Mas era a minha própria vida, era a vida do meu amor, das nossas famílias e das nossas comunidades. Para nós não era um filme… e, para mim, era a minha querida Susie iluminada pela luz da lua a tornar-se minha sob “O Nogal” naquela primavera nas nossas queridas Nogales… que já não existem…já não mais….

Sim, até certo ponto, o tempo cura todas as feridas. Uns anos depois casei-me com uma rapariga bonita e inteligente da Argentina. Conheci-a na nossa cerimónia de formatura na Universidade Austral de Buenos Aires. Lá, na fila, à espera dos nossos diplomas conheci-a. Era engraçada, porque ela era de uma aldeia fronteiriça entre Argentina e Chile. Éramos «da fronteira» e nós dois compreendíamos sem falar o que isto «da fronteira» significava. Mas, uns anos depois, tanto ela como o nosso bebé morreram de parto prematuro mal assistido por um médico sem recursos nessa aldeia fronteiriça enquanto estávamos de férias de visita aos pais dela.

A nossa casa na Nordelta-Tigre nunca nos abrigou aos três. Malditas sejam as fronteiras; malditos sejam os guiões de categoria B!

Fim 







Jesus e Cármen

de
Gerardo Schnell–Medina

Era o dia 23 de setembro, o equinócio de outono. Eu caminhava pelo estreito caminho rural, muito empoeirado, entre a aldeia de Chalchihuites e o sítio arqueológico, a Alta Vista, no estado de Zacatecas, México. Na minha mochila, levava só um litro de água, um pequeno frasco de álcool desnaturado de teor 95%, um velho isqueiro, duas velas meio queimadas e uma humilde estátua da Nuestra Señora del Carmen, ou simplesmente, a Virgem. Era feita de gesso e estava muito desgastada por tantos anos na minha posse e pelas nossas viagens. Originalmente, a Virgem tinha 15 centímetros de altura, mas agora pela osteoporose ela media menos. Durante quatro décadas mantive-a rodeada de flores e velas num recanto da minha casa. Mas quando viajávamos ela era embrulhada num trapo de algodão peruano, originalmente branco mas que foi ficando amarelo ao longo dos anos.

Tinha apenas 20 anos quando comprei a Virgem num convento de freiras no Arequipa, Perú. Nas tardes de sexta-feira as freiras do convento montavam duas mesas no adro da igreja. Serviam para a venda aos fiéis de Cristo do pão cozido pelas freiras no forno do convento. De pé, entre as mesas, estava uma mulher laica que atendia o público enquanto uma jovem freira, com os olhos modestamente voltados para o chão e sem trocar uma palavra com o público, levava o pão às mesas. Assim, a freira ficava de pé por trás da senhora laica para reabastecer as mesas quando fosse necessário. 

Quando eu cheguei à Praça da Independência em Arequipa o meu bom sentido de olfato conduziu-me à igreja. O pátio cheirava a pão fresquinho o que me fez crescer água na boca. Pus a minha mochila por em cima dum banco feito de granito. Avancei uns passos na direção das mesas, hesitei e voltei ao banco. Sorri ao pensar nas palavras de René, o Francês, que fez parte da nossa equipa de alpinismo. Ele passou a sua juventude na Venezuela e não em França porque o seu pai era engenheiro de petróleo lá. René dizia-nos que era melhor deixar as nossas mochilas nos adros das igrejas do que em qualquer outro lugar. Mas o seu cinismo ferveu quando nos disse “que era bem melhor ser roubado pelos católicos do que por ladrões comuns.” Era um rapaz cáustico mas um bom alpinista que merecia o nosso respeito.       

Aproximei-me das mesas e vi dúzias de pães cozidos em forma de trança como se fossem cabelo. Tive saudades da minha querida irmã. Quando éramos jovens ela tinha o cabelo loiro muito comprido e entrançado. Para desgosto dela eu puxava-lhe as tranças frequentemente. Comprei dois pães e reparei que a senhora laica era tão amável que me fez lembrar a minha própria mãe. Voltei à mochila «não roubada», retirei um bom queijo serrano e uma maçã chilena. Sentei-me e comi. De barriga cheia voltei às mesas e vi ao fundo alguns rosários, crucifixos e estátuas. A senhora laica contou-me que eram esculpidos ou moldados por uma das freiras que era artista. Uma das estátuas era uma pequena e lindíssima Virgem. Ela tinha os olhos cheios de paz e da aceitação divina. Eram olhos iguais aos da minha mãe ou da minha irmã quando eu não estava a puxar-lhe as tranças!

Perguntei-lhe se a Virgem estava à venda. O rostro dela tornou-se mais severo e respondeu-me secamente: “Depende. Tu és crente? És católico?” Para evitar o seu olhar direto eu olhei para a Virgem e disse-lhe: “Sim, mais ou menos.” Sem estar convencida a senhora começou a interrogar-me: “És alpinista, não? Porque queres esta estátua?” Eu respondi-lhe: “Sim, sou alpinista. Quero-a porque ando a 15 000 quilómetros de distância da minha casa e sinto-me muito solitário.” Ela disse-me: “tu fazes parte desta expedição internacional que anda em busca dos cadáveres congelados dos bebés nas caves nas montanhas da Cordilheira Branca? Os inocentes que eram sacrificados pelos sacerdotes Inca para apaziguar o Inti, o deus do sol?” Respondi-lhe: “Não minha senhora, apenas vamos escalar a montanha Shaqsha na província de Ancash. Não fazemos equipa com essa expedição arqueológica. Claro que não temos nada a ver com o Inti.”

“Não sei se vou vender-te a Virgem, não me parece que tu sejas muito crente. Ainda praticas a adoração ao Inti?” “Claro que não senhora, não creio nos deuses Inca. Mas por ser católico, bom ou não, preciso de ser acompanhado pela Virgem. Estou tão longe de casa, sinto falta da minha mãe, da minha irmã e além do mais não tenho namorada. Tenho necessidade de ser acompanhado por um ser com o coração terno. Sinto-me demasiado sozinho” A senhora laica disse-me: “Não sei, não sei jovem…vais protegê-la?”. Eu senti, ou tal vez só imaginei, que a freira que estava atrás da senhora percorreu-me discretamente com o olhar. “Sim, senhora vou proteger a Virgem. Olhe os olhos da Virgem, são cheios de paixão...desculpe… queria dizer «compaixão».”

A senhora laica disse-me, desta vez com desconfiança e indecisão, “Não sei, não sei…não é muito frequente nós vendermos estas peças a um desconhecido, uma pessoa que não faça parte da nossa paróquia.” Eu dei mais um passo até à Virgem e perguntei: “Quem é que esculpiu essa estátua? É realmente uma obra de arte.” A senhora disse-me: “Uma freira do convento esculpiu-a; mas todas são feitas por Deus. O dom de esculpir pertence a Deus. Cá no convento o nome do artista fica anónimo. Tudo é feito pela glória de Deus.” Eu pensei que vi a jovem freira engolir em seco e a mão dela tremeu um pouco.

“Então se foi feita por Deus, eu, um crente mereço possuir a Virgem.” De relance imaginei que a bela freira tremeu de cima a baixo. A senhora laica, desnorteada, disse-me: “Não sei, não sei rapaz...” De maneira a apressar a situação eu disse-lhe: “Senhora, já se faz tarde e os meus amigos estão a vir. Quero a Virgem.” Eu vislumbrei que a bela freira por detrás da senhora limpou o suor da testa.

“Não sei, ainda não sei jovem...” repetia a senhora laica. “Senhora, já lhe disse que preciso da companhia de um ser terno, de um ser feminino.” Notei que a jovem bela freira se pôs detrás da senhora, olhou-me nos olhos brevemente. Eu não me atrevi a olhá-la, mas fiquei encantado com o seu gesto. A senhora laica começou de novo: “Não sei…um alpinista católico «não praticante» …não sei…não…” Eu interrompi-a: “Preciso de ser acompanhado pela Virgem.” Pareceu-me que a freira por detrás da senhora ruborizou-se.

Eu, tentando fazer tudo quanto era possível para sair do impasse, apelei à senhora, “Se a senhora preferir, eu posso andar com uma rapariga fácil ou, pior ainda, com uma dessas «vendedoras de carícias». Não acha que será muito mais respeitável eu levar a Virgem?” A freira por detrás da senhora abanou a cara toda corada. “Ah, rapaz tu és um caso perdido! Não fales desses caminhos de perdição. Leva lá a Virgem. É o menos mau! Leva-a já” A jovem, bela freira ruborizada mudou o seu peso de um pé para o outro. A senhora exclamou triunfalmente: “Vendo-te a Virgem para proteger-te do pecado e da condenação ao inferno! O preço é de 100 soles peruanos…e caramba, não regateies para salvares a tua própria alma!” A jovem, bela, angélica freira virou-se e correu rapidamente para o convento. A senhora, solenemente, aconselhou-me: “Cuida-a bem rapaz; ela vai proteger-te para sempre, até à morte. Vou envolver-ta neste tecido de algodão. Ela será a tua salvação!”

Logo que eu escondi a Virgem na mochila os meus companheiros de montanhismo chegaram. Fomos à estação dos autocarros e num dia chegámos à província de Ancash para começar a nossa expedição. Depois de uma semana de árduo montanhismo tínhamos chegado ao nosso «acampamento de base» não muito longe do pico de Shaqsha. Tal como tínhamos programado, era uma noite de lua cheia. Tencionávamos fazer o nosso assalto final ao pico de noite, iluminados só pela lua. Teria sido um ato de suicídio tratar de escalar os últimos glaciares e campos de neve de dia. Numa montanha como esta, tão alta e perto do equador, a combinação do sol a bater na cabeça e a energia solar a ser refletida pela brancura do glaciar seria fatal. Era possível perder-se os dedos dos pés, por queimaduras provocadas pelo frio e, ao mesmo tempo, morrer-se de insolação. No entanto, rimo-nos a dizer que um coitado de um alpinista morto, já não precisava dos dedos dos pés!

Dormimos umas horas, levantamo-nos à meia-noite, tomámos o pequeno-almoço em silêncio, sombrios. Começámos a escalar, mas pela falta de oxigénio, dávamos pequenos passos lentamente de maneira deliberada. Em menos de seis horas chegámos ao cume mesmo ao nascer do sol. Então, qual foi a surpresa de todos quando eu desembrulhei a Virgem no pico da montanha. Eu queria que ela desse uma olhada à sua querida Cordilheira Branca muito perto do céu. Todos gritaram “Estás doido ou quê…trazer uma estátua pesada para aqui…pois, peso por peso terias trazido rações extras para sobrevivermos!” O único que estava do meu lado na discussão era René, o cético. Ele acalmou todos dizendo “É um milagre termos bom tempo em vez de um nevão de morte. Rápido, companheiros, tirem as vossas fotos e desceremos já. Acho que ainda é provável descermos daqui sãos e salvos!” Acenámos com as nossas cabeças em concordância, porque sabíamos que a Cordilheira Branca continha muitos mais cadáveres de alpinistas do que os das crianças de Inti!

Depois de Shaqsha a Virgem era a minha companheira da casa. Não obstante, pelo menos uma vez por ano, quer no equinócio da primavera quer no do outono, eu levava-a para um lugar sagrado para a celebração equinocial. De preferência na América Latina, exceto uma vez em que a levei ao Vaticano. Mesmo sendo o Papa da Argentina, ela preferia as Américas. Acho eu que era uma questão de cartografia. A Virgem sabia muito bem que os Aztecas, os Maia e os Incas já tinham identificado os pontos mais sagrados do mundo e já tinham construído os melhores templos quando os europeus ainda eram meros selvagens, primitivos.

Foi para estes altares sagrados que eu levei a Virgem por quatro décadas. Ela desfrutava dos primeiros raios da luz equinocial a iluminarem-na em todo o seu esplendor. Qualquer que fosse o sítio, México, Guatemala, Equador, Perú ou Chile, ela tinha sempre a cara feliz e contente. A única vez em que ela não sorriu foi no Vaticano. Não esteve contente porque estávamos mal situados, desnorteados, numa longitude muito longe das Américas.     

O sítio de hoje era a Alta Vista (a Alta) perto de Chalchihuites, México, que era o templo-astro observatório, mais ao norte desta cadeia de templos que começa nos arredores de Santigo, Chile. A Alta foi contruída no ano 450 d.C. pelos Toltecas os predecessores dos Aztecas. Colocou-se mesmo pelo Trópico de Câncer, que é a posição zénite do sol. Era o único templo alinhado completamente de acordo com os quatro pontos cardeais.

A Alta era um Teiotihucano, um centro de cerimónias religiosas que, mesmo hoje em dia, funciona de cronómetro astronómico (relógio solar). Fica no deserto, num planalto a 2 500 metros de altura, no meio de nenhures. Além disso, era um sítio muito humilde em comparação com o gigantesco Tikal, na Guatemala, ou o prepotente Machu Picchu, no Perú. Apesar de ser importante, tanto sob perspetiva religiosa como astronómica, poucos turistas chegam cá porque fica muito longe das cidades e das praias. Ultimamente, a Alta tinha-se tornado o local favorito da Virgem. Devia ser pela velhice que ela já não gostava das multidões nem tinha interesse pelas praias.

A Alta consistia em vários edifícios e praças, mas o que sobressaía era o templo, o ponto geodésico. Este tinha sido colocado a partir de uma triangulação matemática dos montes Chapin e Picacho Pelón aos sete quilómetros a sudeste. Esta colocação mostrava que os Toltecas possuíam um enorme conhecimento dos polos, tanto dos astrais como dos magnéticos. (Ainda não sabemos como os malvados Portugueses nos roubaram esta tecnologia para construir os seus próprios «astrolábios» no século XV!) Ao lado do templo havia uma enorme «Sala de Colunas» que consistia em quatro fileiras paralelas de sete colunas cada uma, num total de 28. Serviam de calendário para marcar os 28 dias do ciclo lunar. Pelos equinócios aparecia o sol cujos primeiros raios penetraram até ao altar bem no interior do templo.

Toda a matemática e o aspeto gráfico do sítio apareceram num sonho ao meu amigo Francisco, de Durango, México quando ele tinha apenas 15 anos. O miúdo Francisco esboçou um mapa do sítio numa folha grande de papel que estendeu sobre a mesa da cozinha familiar. Em vez de tinta e pincel ele usava o que tinha à mão, que era nada mais que uns marcadores Crayola. Guardou o mapa durante décadas. Trabalhava como mineiro, rancheiro e operário na construção; mas nunca se esqueceu do seu sonho. Ninguém sabia muito da Alta, mas seus mitos circulavam. Em 1971 um arqueólogo, doutor Kelly do Texas, chegou para fazer escavações. O Francisco respondeu a um anúncio posto no jornal O Imparcial pelo Kelly que solicitava qualquer tipo de informações sobre a Alta. O arqueólogo ficou admirado com o mapa, ligou a uns astrónomos da Universidade de Stanford e a um matemático de Princeton.

Kelly nomeou Francisco «curador» da Alta. Desde então o Francisco andava a cavalo acompanhado por dois cães com uma espingarda para proteger o sítio dos ladrões de antiguidades. Em menos de seis meses, cada detalhe do mapa tinha sido comprovado cientificamente e o sonho do Francisco serviu de base para as escavações. O sítio tornou-se património do povo Mexicano administrado pelo Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH). Eles abasteceram o Francisco com duas elegantes camisas por ano, com o símbolo INAH bordado no bolso. Ele ofereceu-me uma das camisas de presente e vestia-a quando estava no sítio. Éramos muitos orgulhosos das nossas camisas oficiais. Por pura coincidência fui eu que financiei a compra, remodelação e localização do INAH na sua sede nacional na Cidade de México. Eram duas torres gémeas de 18 andares cada uma, situadas na Avenida Insurgentes Sul, Nº 421, Zona do Hipódromo. Apesar de todo o meu esforço, para concretizar esse grande projeto de centenas de milhões de dólares, eles nunca me ofereceram uma camisa.   

Ora bem, era o dia 23 de setembro o equinócio de outono do ano de 2007. Levantei-me às 3h30 da madrugada na casa dos meus amigos em Chalchihites. Bebi um cafezinho e saí de imediato na direção da Alta. Não precisava de uma lanterna, eu já sabia de cor o caminho há décadas. Estava frio e eu percorri os seis quilómetros numa só hora. Ao aproximar-me da pequena casa onde o Francisco pernoitava, comecei a cantar. Os cães dele, pastores Alemães, reconheceram a minha voz e correram na minha direção e lamberam-me as mãos.

O Francisco ofereceu-me um café bem quente que segurei nas minhas mãos para absorver o calor. Em voz baixa, de acordo com a ocasião, conversámos sobre o plano do dia até ouvir o primeiro grupo de pessoas. Chegaram num enorme e novo Chevrolet Suburban estilo todo terreno de onde desceram o Presidente da Câmara Municipal de Chalchihuites, o Governador do Estado de Zacatecas, um operador de câmara e uma repórter do canal, Televisa. Na luz do Suburban a jovem e bonita repórter mostrou-nos muito mais decote do que inteligência. Andava quase colada ao Governador a sorrir e rir a cada um dos seus piropos e piadas. Discretamente, virei os olhos na direção do Francisco. Ele aproximou-se e sussurrou-me ao ouvido: “Ela é uma verdadeira «Senhorita Decote» da TV”; sorrimos de orelha a orelha. O segundo grupo chegou num micro-autocarro, de 20 lugares, de onde saíram 30 cadetes militares nacionais que vieram para controlar «a ralé», como diziam eles, que ia chegar naquele dia.

Os três grupos seguintes, provenientes das várias universidades, chegaram de autocarro que vinham cheios de catedráticos e estudantes de Antropologia, de História e, nos últimos anos, para promover o turismo, também os estudantes de Marketing. Os dois últimos grupos eram grandes autocarros de turistas internacionais, a maior parte deles, parecendo ser cultos do New Age. Vários carros de turistas seguiam atrás dos autocarros. Não eram os nossos favoritos. Às vezes eles perguntavam ao Francisco e a mim, vendo-nos vestidos com as nossas camisas do INAH, onde poderiam obter um bocadinho de peiote para fumarem e ter «uma experiência mais autêntica e Azteca».   

Passaram uns minutos e o Francisco, montado no cavalo, deu instruções aos cadetes que dispersaram pelos pontos estratégicos. Depois, ele dirigiu-se aos outros para lhes explicar a importância de não ultrapassarem os limites das cordas de segurança. Além disso, só aos convidados das universidades era permitido estar de pé dentro do Templo Maior. Os demais deveriam ocupar o terraço atrás do templo. Sendo que este já não tinha teto, os visitantes iam ter uma vista privilegiada do equinócio ao chegar às entranhas do templo.    

Os da Televisa puseram a câmara a gravar tudo para as «Notícias de Hoje». O Presidente e o Governador repousaram em cadeiras portáteis no terraço. Estavam a expor ideias sobre o sítio enquanto a repórter, toda sorrisos, animava-os com insinuações do seu amplo decote. Eu ouvi, por acaso, a Senhorita Decote dizer-lhes que “Um antropólogo peruano, representante do Pan-americanismo, ia preparar o altar este ano. Além disso, num espírito de ecumenismo, ele ia colocar em cima do altar uma estátua da Nossa Virgem del Carmen do Perú.”

Entretanto, já Francisco tinha descido do seu cavalo. Ele e eu, seguidos pelos universitários, entrámos no templo. A uns cinco passos do altar o Francisco levantou a mão pelo que todos pararam. Explicou-lhes que ele e eu «o Peruano» iríamos preparar o altar. Esperei uns minutos até que ele me sussurrou “Já é a hora!”. Aproximámo-nos rapidamente do altar; abri a mochila, passei o frasco de álcool e o isqueiro ao Francisco. Metodicamente, desembrulhei a Virgem. O altar era um obelisco de meio metro de altura com um disco de rocha de um metro de diâmetro sobreposto. O disco tinha sido gravado, na borda da circunferência, com um pequeno canal que o Francisco encheu com o álcool. Coloquei a virgem e as duas velas no centro do disco. O Francisco acendeu as velas e escrutinou o pico Picacho Pelón. Contou em voz alta “três, dois, um, luz!” e acendeu o álcool no mesmo momento que o primeiro raio de sol iluminou a Virgem. 

Ficámos todos de boquiabertos, salvo os catedráticos a quem não agradara nada «o espetáculo de amadores» que nós tínhamos montado. Eu passei ao lado da Virgem e exclamei: “Olhem! A Virgem está a sorrir, está a dar-nos a sua bênção!”. Isto provocou um tumulto entre os universitários, especialmente nos da Católica que, apressadamente, se acercaram do altar e confirmaram a minha observação. Os catedráticos, todos céticos, entreolhavam-se e balançavam as cabeças totalmente perplexos. “Devem ser ateus ou agnósticos” pensava eu.

O sol brilhava e o céu estava limpo. No terraço, os dentes da Senhorita Decote brilhavam a sorrir com a última gracinha do Governador. Eu olhei-os por uns momentos e voltei a ver a Virgem a abençoar-nos e sorri «entre o céu e o mundo tudo estava em ordem». Nós, do primeiro grupo, fomos escoltados para fora do templo e os demais entraram em fila indiana, dirigidos pelos cadetes. Em menos de meia hora o Suburban cheio de VIPs tinha saído para que eles fossem ser notícia noutro lado. Os universitários foram embora rapidamente também, porque tinham sido convidados para o pequeno-almoço no refeitório da escola primária em Chalchihuites. Eu e o Francisco retirámo-nos do pandemónio e voltámos ao pátio da sua casita que dava para o sítio. Cozinhámos ao ar livre sobre uma grelha de carvão feita de uma lata umas tortillas, feijão e fiambre. Comemos em silêncio a pensar no equinócio, na Virgem e nesta experiência.

Por volta das 10h da manhã, restava apenas uma dúzia de turistas espalhados pelo sítio. Os cadetes fizeram soar o alarme, passaram entre «a ralé» para dizer-lhes que o sítio estava para fechar dentro de meia hora. Depois do último visitante saiu, os jovens cadetes deixaram de ser tão formais e começaram a brincar entre si. Com bolsas de plástico de cor preta recolheram o lixo deixado para trás pelos visitantes. Recolheram, inclusive, algumas pedras preciosas postas no altar e em vários lugares como oferendas aos deuses.  

Tudo terminado, o sargento, que era conhecido da família do Francisco, aproximou-se de nós e disse: “Francisco, pode fazer-nos o grande favor de mostrar-nos o mapa que você esboçou do sítio?”. O Francisco entrou em casa, saiu com o mapa, e colocou-o modestamente por cima de uma madeira muito desgastada. Em menos de cinco minutos, explicou-nos todo o desenho esquemático. Depois, o sargento disse, a um dos cadetes, “Beto, tu és o «matemático» da artilharia. Explica-nos como funciona isso da triangulação. Às duas por três, o Beto provava, com exemplos de canhões, morteiros e projéteis, que tanto o sonho do Francisco como os cálculos dos matemáticos-arqueólogos estavam corretos. O sargento animou-os dizendo-lhes que os Toltecas, seus antepassados, tinham construído um verdadeiro astrolábio no deserto. Os cadetes, todos de famílias humildes, apresentaram os seus agradecimentos a Francisco e saíram no seu micro-autocarro.

Por volta do meio-dia o Francisco comentou que a festa tinha acabado e colocou um letreiro à entrada que dizia “Fechado; Se Faz Favor Volte Noutro Dia”. Recuperámos a Virgem do altar, envolvemo-la cuidadosamente no trapo e guardámo-la na mochila. Descemos até ao Templo Menor, o que era dedicado ao deus Tezcatlipoca «o jaguar da noite». A partir daí, tínhamos uma vista panorâmica sobre o vale. Cansados, sentámo-nos na relva silvestre e falámos hora após hora de nada e de tudo. Eram recordações entre amigos de longa data. O Francisco lembrou que nós tínhamo-nos conhecido em 1971, mesmo antes de eu ter começado «as minhas aventuras Andinas» como ele dizia. Foram horas doces, ternas, que nós fizeram lembrar a importância da amizade. Pelas três horas, os cães lamberam-nos as mãos para lhes fazermos festinhas.

Já se fez tarde. O Francisco acompanhou-me até à saída e despediu-se “Gerardo, olha como cuidaste da Virgem durante tantas décadas e até a trouxeste para cá várias vezes. Espero que vocês voltem em breve para comungarem com os espritos Toltecas que ainda andam por aqui.” “Sim, amigo meu, voltaremos até à morte.” Eu saí do sítio fortalecido por um abraço do meu querido Francisco. Caminhei para a Chalchihuites.    

Pensava nesta região e na sua história. Era um deserto povoado por tarântulas, cascavéis, gado e cavalos. Este planalto era bravo com verões ensolarados e quentes, mas invernos em que muita gente morre de frio na neve. Todos daqui eram Norteños porque ficava a uns 890 quilómetros a norte da Cidade do México. As principais famílias eram descendentes dos Espanhóis que tinham chegado no século XVI motivados pela exploração mineira, especialmente da prata e da turquesa. Chalchihuites significa turquesa no idioma dos Toltecas. Muitos dos Espanhóis tomaram posse de terrenos para fundar fazendas de milhares de hectares. Séculos depois, em 1920, os Menonistas, descendentes dos alemães que fugiram da perseguição religiosa, emigraram para cá. Eram excelentes agricultores, criadores, especialmente, de vacas leiteiras e produtores de queijo serrano.  

Como uma miragem vi, atrás de mim, a uma distância de 10 quilómetros, que uma «serpente de pó» se aproximava pouco a pouco. Ao chegar ao meu lado, notei que era uma camioneta preta, nova, tipo todo terreno. Era alta, enorme, topo de gama, da marca Lincoln Navegator. «Deve ser blindada à prova da bala», pensei eu. Com um rangido dos enormes pneus na areia grossa, a besta de duas toneladas parou. O vidro, eletronicamente controlado, abriu-se. Eu tirei o meu boné de beisebol com a inscrição «Hecho En Mexico» e disse ao motorista “Olá Amigo”. Ele perguntou-me “Por onde andas jovem?” No México, todos que ainda andam são considerados «jovens». E todos são «amigos» o que é um gesto de solidariedade dos tempos revolucionários do Pancho Villa. “Estive na Alta para o equinócio com a minha Virgem del Carmen”, respondia a desembrulhá-la para a inspeção do motorista. Ele sorriu-me, com um sorriso amável, mas um pouco torto respondeu-me: “Ela deve ser a única virgem nessas partes, cá somos todos filhos das putas! Entra, sobe, levo-te até Chalchihuites.”

Dei um salto, entrei na camioneta e fechei a porta com um baque que ecoava até à eternidade. O para-brisas e os vidros eram escurecidos de cor cinzenta escura o que impedia que alguém nos observasse. Apertámos as mãos. Havia pistolas, espingarda, metralhadoras AK-47 e granadas de mão espalhadas pelos bancos dianteiros e traseiros. O motorista disse-me, com um sorriso sardónico, “Bem-vindo, quem vem em paz,” e colocou a pistola Sig de 38 milímetros no painel de instrumentos. “Olhe, o senhor não tem medo de mim?” Eu soltei uma gargalhada e respondi-lhe: “Claro que não, amigo. E tu, não tens medo de mim?” Ele sorriu e disse-me: “O que é isto? Quem és tu?” Eu soltei outra gargalhada e disse-lhe que era vice-presidente num banco de Wall Street. Ele ficou de boquiaberta, riu e declarou: “Ah, muito bem, somos do mesmo clã, somos todos filhos das putas!” e recolocou a sua pistola de volta no coldre.

Contei-lhe que eu tinha sido amigo da família Sanchez no Chalchihuites durante mais de 40 anos. Ele riu-se e recordou: “Ah, já sei, tu és o Arizonense que chegou cá vindo da América do Sul.” Eu respondi: “Bingo, aqui estou eu! E tu és o filho de Sérgio Reyes?” Ele contou-me que a sua mãe era a esposa do Sérgio Reyes, mas por cá «a única coisa que sabemos, de fonte segura, é quem é nossa mãe». Eu sorri com a piada de mau gosto e perguntei-lhe: “O Sérgio é o dono da mina «a Gloriosa» na estrada para Durango?” Ele respondeu-me: “Sim. Chamo-me Jesus e tu? Como é que te chamas?” “Sou o Gerardo, é um prazer conhecer-te. Acho que o negócio das minas tornou-se muito difícil nesses últimos anos com o endurecimento da fronteira aos Estados Unidos.” Jesus concordou; “Sim, a mina do meu pai está fechada; todos os mineiros foram para a fronteira fazer túneis para transporte da droga. Eles ganham fortunas a fazer túneis como se fossem formigas.”

Falávamos da Alta, do Durango, e pouco a pouco ele conduziu a conversa para as suas armas. Ao mostrar-me uma ou outra peça, eu descobri que o Jesus era um verdadeiro perito em munições. Orgulhosamente, explicou-me como as armas o serviam bem. Passámos a falar dos filmes de Hollywood. Ele adorava os de Clint Eastwood. Então, interroguei-o: “Jesus, porque é que nos filmes, os assassinos sempre fazem um clique, da pistola a ser armada, mesmo antes de puxar o gatilho? Se eles pretendem estar silenciosos, na caça a alguém, porque é que não armam a pistola antecipadamente em vez de fazerem um clique ao final?” “Ah, isso é fácil de explicar-te, Gerardo. É questão de fé. Queremos captar a atenção da vítima mesmo antes de a matar. No meu caso, quero que os filhos das putas olhem para o Jesus antes de partirem para o Céu!”

Continuámos a conversar sobre os filmes até chegar à pequena praça principal de Chalchihuites. Com a Virgem na mochila eu apeei-me do Lincoln Navegator. Virei-me para agradecer Jesus pela boleia e deparei-me com o canhão da sua pistola. Ouvi o clique, que era muito mais ruidoso do que eu esperava. No mesmo instante em que a bala me atingiu gritei-lhe, com os olhos firmemente postos nos dele, “Vou com a Virgem, Jesus!”

Fim

Nuestra Señora del Carmen:




O Mapa do Francisco: 







Tommy Para Morrer

de
Gerardo Schnell-Medina

As mãos dela tremiam enquanto embrulhavam o presente em papel prateado e o selavam com um laço preto. A jovem, recém-casada, alisou o laço com os delicados dedos e beijou-o. Não era nada excecional, somente um pacote de cinco pares de cuecas para homem, da marca Tommy Hilfiger. Eram de várias cores, mas ela preferia as pretas. Esta cor, para ela, representava o perigo e era excitante.

O rosto dela ruborizou-se com as palavras maliciosas do seu marido, proferidas ao desligar o telefone, uns minutos antes. Com a mão, ela afastou a franja de cabelo da testa e abanou a cabeça. As suas palavras deixaram-na excitada e alheada. “Este homem mata-me”, disse ela.

Há três anos, conheceu-o no casamento de uma prima. Ele era padrinho de casamento e desempenhou um papel importante na cerimónia. Ao vê-lo, foi amor à primeira vista. Se não era amor, no mínimo era desejo. Ela vibrava por ele. Era cinco anos mais velho do que ela. Ele tinha trinta anos, era um Navy Seal, um daqueles homens militares, das missões secretas. Nunca falava do seu trabalho.  Era, oficialmente, nada mais do que um qualquer militar que, supostamente, passava os seus dias num escritório.

O galanteio deles era feito de avanços e recuos. Ele era um cavaleiro apaixonado que perseguia a donzela mas, muitas vezes, tudo chegava a um impasse quando o seu telefone tocava. “Tem vinte e quatro horas para chegar à base militar Fort Brage, North Carolina para uma operação no estrangeiro. A missão demorará de três semanas a três meses. Atualize a sua última vontade e testamento e organize os seus assuntos financeiros e familiares antes de sair.” Clique..telefonema terminado…ruído seco.

Naqueles momentos, ele guardava cuidadosamente o telefone e sempre a contemplava com uma expressão de amor profundo. “Meu amor, precisamos de um intervalo na nossa relação. Hoje, podias fazer-me o favor de me levar ao aeroporto à meia-noite?”, dizia ele à sua donzela.

Tentando ser corajosa, ela consumia o seu próprio medo, engolia o seu desânimo, e dizia-lhe: “Sim, minha vida.” Um forte abraço, um beijo apaixonado e ficava a vê-lo caminhar pela pista de descolagem, feita de alcatrão, até à subida do avião militar. Nos verões quentes, as miragens flutuavam pelo alcatrão como se fossem subir ao céu.

Sem nenhum contacto, durante semanas ou meses, mais cedo ou mais tarde, ele sempre reaparecia, anunciando, antecipadamente, a sua chegada com uma chamada telefónica. “Chegarei aos teus braços em breve. Prepara-te para ser possuída, meu amor! Beijos e abraços. Até já.” Umas horas ou um dia mais tarde, chegava sempre à porta de casa com uma dúzia de rosas vermelhas na mão, uma garrafa de vinho de qualidade superior, uma caixa de chocolates e, discretamente ocultados na mochila verde, uns preservativos. Um militar preparadíssimo para tudo.

Certa noite, na cama, ele levantou-se de repente e sentou-se, ainda meio a dormir, gritando: “Vai àquele quarto! Bin Laden deve lá estar!” Em vez de o acordar, ela beijou-o e acariciou-o com o soporífero mais simples do mundo: o sexo. Voltou a pô-lo a dormir, sem que ele soubesse que lhe havia revelado algo confidencial. Oscilando entre sensações maternas e satisfação corporal, ela sorriu a si própria, sabendo, naquele momento, que o seu homem era o líder da equipa. Fechou os olhos e dormiu tranquilamente nos braços dele.

Na manhã seguinte, abraçando-a na cama, acompanhado pelo canto das toutinegras-de-cabeça-preta no jardim, ele pediu-a em casamento. Com lágrimas nos olhos, ela disse-lhe: “Sim, aceito-te como meu marido, até ao fim dos nossos dias”. Ela beijou-o, ternamente, mas desta vez com os olhos abertos, sabendo perfeitamente que os dias dele estavam contados. Porém, para ela, cada dia era mais doce, mais vibrante e apaixonado.

De volta à realidade e ao presente da Tommy, ela ficou contente, especialmente com a combinação de cores do papel bonito e do laço masculino. Ela pensou para si própria, abanando distraidamente o presente na mão, “Bem, este homem apanhou-me. Devo tomar um duche de água fria para poder aguentar todas estas horas até ele chegar.” Ao tomar consciência do que estava a usar para abanar-se, o embaraço ruborizou-lhe o rosto. Acabou por colocar o presente em cima do balcão da cozinha e correu para o duche.

Ao ouvir a campainha da porta de casa, ela reviu-se no espelho e alisou as rugas da saia e da blusa. Estava entusiasmada com o jogo que se seguiria. Aquando do regresso de uma missão, ele abria sempre a porta, deixava cair a mochila carregada, desembainhava a sua faca de guerreiro, agarrava a sua pistola, SigSaurer P226 Navy e vociferava: “Onde é que ele está? Onde? Uma jovem rapariga, bonitinha, sexy como tu, deve ter um amante. Onde é que ele está? Vou matá-lo! Mato-o!”

Então, percorria toda a casa, desesperadamente, abrindo todas as portas dos quartos e dos armários. Rindo por dentro, mas com o rosto disfarçado de horror, ela via-o violentamente procurando esse amante imaginário. Finalmente, ele, satisfeito por não encontrar um amante, acalmava-se e recolocava a pistola e a faca nos seus coldres. Depois, virava-se, dava-lhe a cara e beijava-a apaixonadamente. Os dois envolviam-se numa dança lenta e sensual. Era sempre o mesmo ritual mas, para ela, uma rapariga tímida e de boas famílias, era imensamente emocionante. “Morro por ti”, dizia-lhe ela.

Desta vez, ela ouviu a chave na fechadura e estava prestes a rebentar de desejo. Ela tremeu e deu alguns gritinhos de alegria. De repente, a porta abriu-se violentamente apenas a uns centímetros da cara dela. Um grito “O teu homem, já chegou!”. Conforme o planeado, como o guião de um filme, ele deixou cair a sua mochila no soalho, bateu a porta, fechando-a com o pé direito e gritou: “Onde está ele? Uma jovem sexy rapariga como tu deve ter um amante. Mato-o!”

Desta vez, azarento, avançou com toda a sua força, mas os seus pés ficaram presos nas tiras da mochila que era tão pesada. Devido à força gravitacional, caiu abruptamente, como uma árvore serrada na base. Nem sequer, teve tempo para poder debater-se.

Ainda atordoado, ele disse-lhe, quase num sopro inatingível: “Amo-te do fundo do meu coração”, mesmo antes de morrer pelos seus pulmões, sufocando-se no seu próprio sangue. Horrorizada, ela ajoelhou-se ao lado do corpo espástico, procurando acalmar o seu marido, já morto.

Por ser um homem forte, bem musculado, até enorme, demorou a pô-lo de barriga para cima. Ao vê-lo, ela passou as suas mãos delicadas pelos seus olhos e quase desmaiou. Gritou…um grito da alma…um grito para pôr o cabelo em pé. Ao espreitá-lo, por entre os dedos das mãos ainda presas aos olhos, gemeu: “Que diabo é isto?” Tocou no cabo da faca que estava metida entre as suas costelas, mesmo no centro do peito. A probabilidade era de um para um milhão, mas estava feito. A lâmina da faca já havia penetrado diretamente no coração.  
  
Desesperadamente, ela agarrou o cabo. Ia puxar-lhe a faca. Mas, pensou duas vezes e não o fez. Um espasmo, o último dele, deixou o Navy Seal exâmine e transportou a recém-casada para uma realidade tão irreal. Ela soltou o cabo ensanguentado, enxugou a mão, olhou-a e lambeu-a. Deitou-se ao lado dele, abraçou-o, chorou inconsolavelmente e caiu num sono profundo, presa a ele.

Ela acordou por volta da meia-noite. Um silêncio profundo, um miasma e uma obscuridade impenetrável a tinham-na cercado. Às apalpadelas, a mão esquerda encontrou o seu guerreiro caído. Foi um choque tão grande que a fez uivar como uma loba numa alcateia. Entonteceu-se num instante. Confusa, completamente desorientada, e até enlouquecida, com a mão direita, procurava, por engano nas trevas, o interruptor da luz pelo soalho. Ainda mais desesperada, gritava: “A luz, a luz! Pelo amor de Deus, acende a maldita luz!” Pousou a cabeça, inutilmente, no tapete para tentar ver o interruptor. Começou a bater, equivocada e violentamente por todo o lado, pensando que ia encontrar o interruptor da luz.

Roçou algo…o tiro da pistola 9 milímetros foi tão rápido e o fogo tão intenso que, quase no mesmo instante, ela foi feita cega, também foi morta, numa obscuridade demoníaca, à queima-roupa. O canhão dele, até ao fim, nunca o deixou ficar mal.

No tribunal, o juiz condenou, a recém-casada, a prisão perpétua, por ter assassinado o seu marido. Foi exonerada porque todas as provas indicaram que ela se havia suicidado umas horas depois de ter morto o seu Navy Seal.

Uns dias depois, a mulher do detetive da polícia, excitava-se ao ver o seu homem nas suas novas Tommy.


Fim