Susie Nogales
de
Gerardo Schnell–Medina
Dizíamos que era «o voo dos heróis» porque nós tivemos
que levantar de madrugada, conduzir até ao aeroporto Jorge Newbery, quase no
centro de Buenos Aires, e descolar às sete da manhã. Voámos contra ventos
traiçoeiros, vindos dos colossais Andes, para uma aterragem na pequena aldeia
de San Martin de los Andes, junta às montanhas. A pista era do tamanho de um
campo de futebol geralmente coberta por nuvens. As duas horas de voo eram uma
eternidade enquanto rezávamos para que esta viagem não fosse para nos levar
para «o Céu». Eu pensava em todas estas parvoíces ao sair da nossa casa, fria e
vazia, no subúrbio Nordelta-Tigre a 20 quilómetros do aeroporto.
Não havia fila na bomba de gasolina Shell Petrol ao
lado da autoestrada Ramal Tigre e desta vez o empregado aceitou-me o cartão de
crédito. Com um cordial “obrigado” ao empregado, no meu espanhol de sotaque
Italiano de Buenos Aires, saí do posto de gasolina e voltei à autoestrada.
Ouvia na rádio Los Fabulosos Cadillacs, a nossa banda de rock
de referência na Argentina. Apesar de terem ganho o Latin Grammy Award,
em 1998, eles continuavam a ser muito irreverentes e engraçados. Cheguei ao
Newbery «a horas» pela primeira vez na minha vida profissional. Tive tempo para
beber um «submarino» antes de embarcar no pequeno avião. «O submarino» é uma
das pequenas delícias que faz de Buenos Aires uma delícia no dia-a-dia.
Consiste em duas doces barras de chocolate feitas de cacau Amazónico servidas
ao lado de um grande copo de leite quente, quase escaldante. Mete-se os submarinos
de chocolate no mar de leite e mexem-se até se liquefazerem numa confeção
divina para as frias e sombrias manhãs desta grande cidade portuária.
Comprei um exemplar da revista Contratiempo no
quiosque de um Boliviano de cara lúgubre, “deve ser um imigrante que quase
morre de fome”, pensei eu. Ao pôr o troco de dois pesos na minha bolsa,
virei-me na direção da rampa de embarque e cruzei-me com o «Steven Spielberg».
Ele disse-me: “Ah, és tu «Gabo», andas sempre com uma revista literária na
mão!” Essa piada, do meu amigo de longa data, provocou uns sorrisos cúmplices
entre nós. Éramos uma equipa de cinco funcionários do Ministério do Turismo
Nacional da Argentina. Três homens e duas mulheres em busca do paraíso
Argentino para rodar filmes publicitários para atrair os turistas
internacionais ao nosso país e, claro, os seus dólares, os seus euros e os seus
ienes chineses. Nessa altura já tínhamos trabalhado juntos por quase duas
décadas, todos nós tínhamos entre 50 e 60 anos. Trabalhávamos como burros de carga,
era trabalho duro, mas dava-nos também muita autonomia. Não tínhamos de nos
apresentar no abismal escritório do ministério «a horas» todos os dias.
Esperávamos aguentar só mais uns anos para atingir a idade da reforma. Mas, ao
fim do dia, nenhum de nós sabia como iria sobreviver com as pensões da Caixa
Geral de Aposentações. É que, os fundos de investimento na caixa nacional de
pensões para a velhice eram muitos reduzidos devido aos saqueios constantes por
parte dos sucessivos governos.
Ao entrar no corredor do avião, cumprimentámos os nossos
três restantes colegas de equipa pelas alcunhas, «Brigitte Bardot, Cheryl Tiegs
e Leica». Só entre nós, dentro da equipa, usávamos estas alcunhas. Quando era
criança, a Brigitte queria ser uma atriz de alcance internacional, a Cheryl uma
modelo nas passarelas de Nova Iorque e o Leica um fotógrafo famoso do estilo de
Alfred Stieglitz. Se se acrescentar um realizador de filmes de Hollywood, o
«Steven Spielberg» e eu o «Gabriel Garcia Márquez», ou simplesmente o «Gabo»,
um aspirante a autor, estará completa a nossa equipa. Eu, encarreguei-me de
escrever os guiões para estes filmes promocionais turísticos que eram piores do
que os filmes de categoria B ou de um «spaghetti Western». Outra
responsabilidade minha era escrever todos os anos um relatório eloquente capaz
de justificar a existência da nossa equipa face aos constantes cortes
orçamentais do governo ameaçado pelo FMI, o World Bank e os bancos
internacionais. Mas, o pior, era que o Steven, um doutorado em artes cinematográficas
pela prestigiada Universidade de Buenos Aires, estava reduzido a converter-se
num político para fazer lobby junto do senhor Ministro para a
nossa própria sobrevivência. Apesar disso, estávamos contentes por ter tais
empregos num país com taxas de desemprego acima de 30%. Era muito melhor para
nós, artistas frustrados, ter uma vida profissional num ministério em vez de
viver abaixo do limiar da pobreza como metade dos nossos compatriotas.
O melhor destas viagens a diferentes regiões do país era
que o nosso ministério pagava-nos uns «per diem» em ajudas de custo. Para
poupar dinheiro as duas mulheres arrendavam sempre um só quarto, com uma
pequena cozinha, num hotel. Nós, os três homens, levávamos sempre os nossos
sacos-cama e dormíamos no chão do quarto delas. Cozinhávamos no quarto qualquer
coisa comprada nos supermercados locais. O único aborrecimento era, de manhã,
ter de esperar que a Cheryl e a Brigitte se maquilhassem. Nós, os homens,
dizíamos-lhes sempre: “Apressem-se, despachem-se! Olhem para nós, os vossos
homens, somos tão bonitinhos que não necessitamos maquilhar-nos”. Elas
respondiam: “Calem-se, calem-se feios, feíssimos e tenham um bocadinho de
paciência com as vossas rainhas!”
Ao fim de uma semana de filmagem, num lugar remoto da
república, dividíamos todos os custos por cinco, pagávamos o hotel, e metíamos
o extra «por dia» nos nossos bolsos para levar para casa. Apesar de sermos
profissionais de «a imaginária e cada vez mais pequena classe média da
Argentina» este dinheiro era quase igual aos nossos salários mensais. O extra
ajudava-nos a alimentar e vestir as nossas famílias. A única regra existente,
desta convivência entre nós os cinco, era a de não comer feijão. Descobrimos,
há 15 anos, que o Leica era capaz de produzir mais «metano» do que todos os
campos de gás natural da Venezuela.
Mas esta viagem a San Martin era diferente;
só íamos filmar as insípidas promoções turísticas por dois dias. Nos cinco dias
restantes íamos gravar os cenários no campo do argumento cinematográfico que eu
desenvolvi na minha pequena novela. Tal novela teve uma tiragem de trezentos
exemplares, dos quais, só metade fora vendida. Os restantes jazem na garagem do
meu sogro, em Rosário, como num cemitério de livros. Os cenários do campo eram
a única parte que nos faltava para ter uma produção cinematográfica completa.
Há dois anos que juntávamos todas as nossas poupanças e até pedíamos dinheiro
emprestado aos nossos parentes. Lançámos a nossa clandestina empresa de
produção cinematográfica, nomeada Southern Cross Productions, aos
fins-de-semana, utilizando todo o equipamento de produção do ministério!
A irmã de Cheryl era uma beleza quarentona que dava aulas
de Tango aos estrangeiros. Ela apaixonou-se por um dos seus alunos, um ator de
50 anos de Hollywood, o Robert Duval, que mantinha uma casa de verão em Buenos
Aires. A irmã, bem armada com os seus poderes de persuasão e encanto, tinha
vendido os direitos de distribuição da nossa produção cinematográfica ao senhor
Duval por $200 000 dólares americanos. Mas nós ficaríamos também com 5% sobre o
preço dos bilhetes vendidos. Ah, dólares americanos! Os que o nosso próprio
governo não quis que nós tivéssemos. Era uma fortuna para cambiar por pesos
argentinos no mercado negro. Nós os cinco cantávamos repetidas vezes: “Vamos
aposentar-nos cedo! Vamos a Hollywood!” Era realmente nada mais que um jogo
muito arriscado, algo próprio de jovens e não de gente como nós, quase idosos.
Mas tivemos que fazê-lo simplesmente para sobreviver. Com os $40 000 que Cheryl
ia receber seria possível manter a sua querida mãe a fazer hemodiálise. Era uma
vergonha, mas o SS Salud (Superintendência de Serviços de
Saúde Nacional) já não contava com um orçamento suficiente para a hemodiálise e
outros tratamentos dispendiosos.
Ora bem, fomos à procura dos nossos lugares no avião.
Sempre como um realizador de Hollywood, o Steven, sentou-se, no lugar que dava
para a janela e eu no que dava para o corredor. Meti o meu guião na bolsa do
assento da frente. Mecanicamente, o Steven dobrou o seu jornal do dia, La
Nación, e meteu-o na bolsa da frente. Dei uma vista de olhos ao jornal
e notei, na capa dobrada, a data «15 de maio 1999» com a manchete «Jogos Pan
Americanos Montreal, Canadá».
Após 20 minutos de voo tínhamos atingido a velocidade e a altitude de cruzeiro. O Steven
desdobrou La Nación e colocou-o sobre a sua mesa desdobrável.
Enquanto ele esfregava os olhos, fiquei chocado com a notícia em letras grandes
«¡Viva a Mexicana. Viva México!» Tinha uma foto de uma bela
mexicana, a Ana Gabriela Guevara Espinoza, com o rosto em esforço no final da
corrida dos 400 metros nos Jogos Pan Americanos. Espontaneamente,
comecei a balbuciar: “É a cara dela, é a Susie!”
O Steven deixou de esfregar os olhos, repôs os óculos num
ápice, e olhou para mim por entre La Nación, com perplexidade.
“Acalma-te Gabo, acalma-te, que se passa?” Apontei com o meu dedo a tremer para
o título do jornal e disse-lhe: “A Espinoza, é ela, ó meu tolo Steven. Meu
Deus! Não sabes o que significa isso?” Num piscar de olhos, imaginava a minha
querida Susie a correr à minha frente desde a fronteira até à mansão dos seus
pais em Nogales, Sonora, México. Gritei “É a Susie, é a Susie!” ao Steven e ao
resto da nossa equipa, que então, me tinha rodeado. Eu dizia-lhes: “Sim, sim, a
Susie tinha-se formado pela Católica, casado com um fulano de nome Guevara,
tinha dado à luz!” O Steven não prestou atenção nenhuma ao meu estado
histérico, mas leu, calmamente, o periódico em voz alta. Dizia que “a mãe da
jovem atleta mexicana tinha morrido só uns anos antes dessa vitória.” Ao ouvir
estas palavras destroçadoras, senti-me de luto e chorei baba e ranho. Num
disparate momentâneo, refleti num refrão das missas da minha juventude
“…bem-aventurados os que choram.” Pensei amargamente “Meu Deus nunca me vou
recuperar desses catecismos da minha adolescência!”
Ao ver a cara de preocupação do meu amigo Leica,
disse-lhe: “Dá-me um abraço meu amigo, acabei de perder o amor da minha vida.”
Ele, apesar de virar os olhos na direção de Brigitte e Cheryl como se eu fosse
um louco, abraçou-me com um amor fraternal. Era um abraço de amor e aceitação
só possível a um neto de imigrantes italianos. (Dizemos na América do Sul que
os argentinos são os únicos italianos que falam espanhol.)
Momentos depois, a hospedeira de bordo interrompia-nos
para me estender uns lenços, tipo Kleenex, mas de má qualidade de produção
nacional. Perguntou: “Que se passa? O senhor está bem? Pode voar? Se for uma
emergência podemos desviar-nos e aterrar em Santa Rosa.” “Não, estou bem,
obrigado, pois, pois é que sou guionista…é complicado…mas o meu amor foi
enterrado de debaixo de uma árvore de Nogal.” A jovem hospedeira olhou-me, com
incredulidade. Eu tratei de clarificar o assunto dizendo-lhe: “Às vezes as
minhas protagonistas morrem logo que nascem. É difícil perder tantos seres
queridos num prazo tão curto.”
Sem se meter mais no assunto, a hospedeira deitou o
kleenex no saco do lixo e olhou-me. Com o rosto apenas a uma mão de distância
da minha, ela ternamente disse: “Sim, sim amorzinho, às vezes as nossas vidas
não são nada mais que uns filmes. Mas, filmes ou não, são as nossas realidades.
Fecha os teus olhos coraçãozinho, dorme, dorme. Chegaremos a San Martin em
menos de duas horas...dorme, dorme.”
E dormi, dormi profundamente, pela primeira vez em
décadas sem sonhar com Susie a correr, à minha frente, durante a nossa fuga
fronteiriça mexicana, muito longe de casa, nos subúrbios de Buenos Aires. Ao
aterrarmos em San Martin, sem marcar golo no campo de futebol, alugámos uma
pequena camioneta estilo TT de cinco lugares. Fomos diretamente para a pensão.
Enquanto desfazíamos as malas e os sacos-cama o Steven foi ao supermercado para
comprar fiambre, queijo, pão e um bom vinho para fazermos um piquenique. Por
ser um lindo dia de verão, pusemos uma manta na relva, atrás da pensão,
sentámo-nos, e começámos o nosso improvisado «almoço». Houve uma pausa na
conversa…engoli em seco à espera.
Olhando-me com um olhar firme, Brigitte disse-me: “Gabo,
diz-nos. O que se passou no avião?” Era mais uma ordem do que uma pergunta.
Durante estas quase duas décadas de trabalho em equipa, ela tinha sido
designada a psicóloga do grupo. Foi inútil tentar escapar à questão. Então,
entre «comes e bebes», comecei a contar-lhes algo que nunca me tinha ocorrido
contar a ninguém, especialmente à minha esposa, durante tantos anos juntos.
Contei-lhes da minha juventude em Nogales, Arizona, que fazia fronteira com
Nogales, México. (Nogal significa «nogueira» em espanhol.) Naquelas décadas de
50 e 60, entre as duas Nogales, não havia nenhuma fronteira em si. Era
nada mais do que dois postos de controlo aduaneiro, um americano e o outro
mexicano, separados por linhas pintadas no asfalto. Não havia nada
de muros, metralhadoras, nem sistemas de segurança. Tanto as crianças mexicanas
como as americanas jogavam o jogo da macaca entre as linhas pintadas na estrada.
Pois, eu continuava a contar-lhes que nos dias de
independência das duas nações, 16 de setembro e 4 de julho, os desfiles e
festivais passavam pelas ruas principais de ambos os lados da fronteira. Os
dois povos celebravam juntos com fogos-de-artifício, bandas e danças. Além
disso, nos dias de escola os jovens mexicanos cruzavam a fronteira a pé,
levando as suas cestas de almoço, para assistirem às aulas nas nossas escolas e
nos nossos colégios, que eram melhores do que os do México. Aos 6 anos,
apaixonei-me pela Susie Bettencourt, a filha do presidente da câmara de
Nogales, México. O seu nome, Susie, naqueles dias era muito comum entre as
meninas mexicanas que queriam adotar um nome americano da moda. Quando ela
tinha quatro anos, em 1957, o pai dela tinha-lhe dado o nome de «Susie» devido
à canção popular “Wake up Little Susie”, dos Everly Brothers.
O meu pai era um pecuário americano com mais de 1 100
hectares perto da fronteira. Todos os outonos, costumava doar o bezerro mais
gordo ao pai da Susie para um churrasco de paz entre as nossas duas famílias.
Nas primaveras, para um churrasco na nossa casa, o senhor Bettencourt doava, ao
meu pai, um peixe Jurel de Castilla geralmente a pesar mais de
40 quilos proveniente do Mar de Cortés no México. Vivíamos em paz nesses dias.
Lembro-me, com nitidez, de que estávamos a formarmo-nos
pelo Nogales High School (Liceu de Nogales) na primavera de
1971. Na noite do baile de finalistas, cheguei no meu carro a casa dos
Bettencourt no outro lado da fronteira. Jurei, solenemente, ao senhor
Bettencourt que lhe levaria a sua filha de volta a casa antes da meia-noite.
Passado este purgatório, a minha “Wake Up” e eu chegámos ao salão de baile,
elegantemente vestidos, e começámos a dançar. Estivemos em êxtase a abraçar-nos
hora após hora. Mas, de repente, o irmão da Susi, Hernán, apareceu a agitar as
mãos freneticamente. “Gera, Gera! Vem, vem! O meu pai está zangado contigo,
tens de devolver a Susie já a casa. Eles andam à tua procura!”
“Que parvoíce é essa, são as onze menos um quarto, temos
todo o direito de nos divertir mais uma hora.” Hernán diz-me: “Não, não, não!
Hoje é o primeiro dia da hora de verão, no México. Mas, aqui, no Arizona, vocês
nunca adotaram essa mudança de hora. O teu relógio está uma hora atrasado. A polícia Sonorense anda
à tua procura por ambos os lados da fronteira!” Fiquei desconfiado mas tive que
obedecer ao Hernán.
“Vamos, vamos!” gritou Hernán. “O meu pai e a polícia já
estão a caminho para recuperar a Susie.” “Bem”, disse eu. “Não sejas tão dramático.
Entramos no meu carro e estaremos no México em menos de um minuto.” Hernán
gritou: “Não, não! A polícia conhece o teu carro… estão a procurá-lo por toda a
parte. É melhor corrermos!”
Então, a Susie tirou os seus saltos altos, deu-os ao
Hernán para levá-los, levantou o seu vestido de gala até aos joelhos e correu.
Corremos como o vento pelas ruas vazias e tranquilas em direção à fronteira.
Nesse tempo, a fronteira, era nada mais do que uma cerca de três fios de arame
farpado. Hernán levantou um fio com a mão que não segurava os saltos altos. Eu
empurrei para baixo os outros dois fios com o meu sapato. Para meu grande
espanto, Susie levantou o seu vestido de gala até à cintura, dobrou-o, com as
mãos, e passou de modo limpo para o outro lado da fronteira! Fiquei espantado
com tal vista, paralisado sem me mover. Hernán trouxe-me à realidade com uma
pancada nas costas com os saltos altos e rosnou “Vamos! Vamos!”
Corremos os últimos cem metros pela rua acima até à
mansão familiar. Susie, por ser a atleta estrela na corrida Junior
Olympics do Liceu de Nogales chegou primeiro. Deixou cair o vestido,
recolocou os seus sapatos de salto alto e afofou o seu penteado. Ao abrir o
portão do jardim caminhámos casualmente até à porta principal. Hernán foi o
primeiro a entrar em casa, deixando-nos sozinhos durante uns momentos.
“Susie, Susie, gostei muito da maneira como cruzaste a
fronteira e correste até cá. Que pernas lindas tens. Quando quiseres voltar a
fazê-lo, avisa-me!” “Eh, eh, eh! Tu és mesmo homem, meu amor. Cala-te! Nunca
menciones isso a ninguém, especialmente aos meus pais!”
Íamos beijar-nos mas, quando os nossos lábios estavam a
fazer-nos entrar no céu, a porta da casa abriu-se violentamente. A mãe gritou:
“Susie, Susie! Entra, entra, são cinco para a meia-noite. O teu pai vai
matar-te.” Susie, sem cerimónia, entrou e a porta fechou-se abruptamente na
minha cara, quase a beliscar-me o nariz. Com desalento, desci os degraus da
varanda e, mesmo ao entrar na rua, a porta abriu-se de novo. A mãe gritou: “Vem,
vem cá jovem!” Totalmente desorientado, virei-me, subi os degraus, a mãe
agarrou-me pela orelha a dirigiu-me até à cozinha.
Forçadamente, sentou-me numa cadeira à mesa, e com todas
as luzes e candeeiros acesos, começou a interrogar-me. A Susie e o Hernán
estavam aterrorizados, a tremer como varas verdes, por trás da mãe. “Que
fizeste à minha filha?” “ Eu não fiz nada à…” Zás! Deu-me uma bofetada forte na
cara. A Susie deixou sair um guincho ao ver a mãe bater-me. “Repito: Que
fizeste com a minha princesa?” “Nada, Senhora, absolutamente nada!…dançámos
e….” Zás! Outra bofetada na outra bochecha. A Susie estava a soluçar.
“Manchaste a pureza da minha menina! Confessa! Admite! Ela chegou a casa
ofegando, com as bochechas coradas, o penteado desfeito, os olhos a brilhar.
Fizeste algo contra a honra da nossa família”.
“Não, não senhora ouça-me por favor. Esta noite o tempo
estava tão agradável que decidimos dar um passeio até sua casa em vez de virmos
de carro. Saímos do baile, cruzámos a ponte internacional da La Paz e
Amistade, e ao virarmos para a sua rua, fizemos uma aposta: “Vai uma
corrida? Vamos ver quem dos três chega primeiro!” A Susie estava a sorrir e a
animar-me com gestos para que eu continuasse a fábula. “Estimada senhora, por
isso, chegámos a sua casa tão desfeitos como os maratonistas!” A Susie e o
Hernán estavam na sombra com sorrisos de orelha a orelha. Nesse mesmo momento a
mãe virou-se na direção dos filhos. Eles fizeram extinguir de imediato os seus
sorrisos. Ela interrogou-os: “Filhos, é verdade o que disse o Gerardo? Ele está
a dizer a verdade, ou não? Digam-me agora!” Com vozes a cantar em uníssono,
como um coro na missa, eles responderam: “Sim, mãe, sim é verdade o que diz o
Gerardo.”
A aparência física da mãe descontraiu-se, virou-se para
mim e disse: “Gerardo, desculpa-me, podes voltar para a tua casa agora. Nós
encontramos a tua família na missa amanhã. Boa noite.” Abruptamente, a Susie
disse-lhe: “Mãe, pelo menos, posso acompanhar o Gerardo até à rua para me
despedir de maneira mais calma?” “Sim, minha filha.” Mais calmos e parcialmente
escondidos atrás de uns arbustos, no jardim, tentámos, de novo, beijar-nos mas,
de repente, o jardim ficou banhado por umas luzes brilhantes vindas da rua,
acompanhadas por um barulho horrível. O primeiro a chegar foi o senhor
Bettencourt, no seu Cadillac, seguido por dois carros da polícia que tinham
trazido, de reboque desde a América, o meu carro!
O senhor desceu do seu carro e marchou diretamente para
casa sem perceber que a Susie e eu estávamos lá. Deixou aberta a porta da casa
enquanto Susie me dizia “tchau” e correu pelo lado da casa para entrar pela
porta das empregadas da cozinha. Subi os degraus e parei, como se fosse um
pecador frente a São Pedro na porta do céu. O senhor Bettencourt estava furioso
a gritar com a sua mulher, explicando que já que a menina não tinha sido
devolvida a casa a tempo, ele decidiu embargar o meu carro até que eu devolvesse
a sua filha!
Nesse mesmo momento, a Susie e o Hernán saíram da cozinha
e ao entrarem na sala de estar o pai ficou admirado. “Tu, Susie, estás aqui sã
e salva? Estivemos à tua procura por toda a parte no Arizona!” “Sim pai, a tua
princesa está aqui” e ela abraçou o pai. A mãe disse ao marido: “Acalma-te meu
amor, ela chegou a casa há meia hora, exatamente quando faltavam cinco minutos
para a meia-noite. Tudo está bem, está bem, não te preocupes.”
Mas o Senhor Bettencourt respondeu fortemente, quase a
gritar à sua mulher, “Ah, não. É a senhora que está realmente equivocada, olha
lá” orgulhosamente a mostrar o seu novo relógio eletrónico da marca Casio a
todos. Para manter a paz, a senhora disse ao marido “deixa-me ver essa novidade
que contém a última tecnologia igual aos da NASA que puseram o homem na lua.”
A senhora, numa maneira suave, diplomática, para acalmar
o marido explicou-lhe “Ah, meu amor, acho que à noite – quando mudaste a hora –
tu avançaste a tua NASA duas horas em vez de só uma.” A cara do Senhor
Bettencourt ruborizou-se ao ver o erro. Para salvar as aparências ele
disse-lhe: “Tens toda a razão meu amor; vejo que nunca vou ser astronauta!” e
abraçou a Susie com um abraço paternal.
A mãe, ao notar que eu ainda estava lá fora, disse a
Susie “Acompanha Gera até à rua e despacha-o. Gerardo, saudações aos teus pais,
até amanhã na missa!” Estava completamente desnorteado, mas Susie saiu de casa,
fechou a porta, pegou-me na mão e escoltou-me até à rua. Nessa altura, todos os
agentes da polícia tinham abandonado esta situação familiar tão delicada.
Encontrámos o meu carro a minha espera. Susie abriu-me a porta, sentou-me no
carro e beijou-me apaixonadamente. “Sou tua, sou toda tua, toma-me, toma-me.
Espero-te no parque, por baixo de «O Nogal» às duas horas da madrugada. Sou
tua, toda tua!”
Às duas horas em ponto, estava a sentar-me no meu carro
«não confiscado», quando vi a princesa mais bela do mundo a caminhar pelo
parque perto da ponte de Paz e Amistade. Ao aproximar-se de «O
Nogal», ela sorriu, timidamente. A luz da lua iluminou o delicado rosto da
minha namorada. Fizemos amor, a primeira vez para nós os dois, com “O Nogal”
por única testemunha.
Depois, abraçados no carro, ela contou-me uma espécie de
chantagem, que ela tinha feito com o Hernán. Iria contar aos pais alguns
detalhes comprometedores das atividades amorosas dele e da sua namorada, se ele
não lhe oferecesse uns preservativos para nosso uso naquela noite. Ele deu-lhe
dois preservativos e um abraço com umas palavras de ânimo “O amor é divino,
irmã, o amor é divino.” Ela tinha-se escapado do seu quarto enquanto os seus
pais roncavam em paz, por não terem deixado cair a honra da família. De
madrugada, levei-a clandestinamente a sua casa, ela entrou na mansão sem
acordar os pais e abriu a janela no segundo andar. Lançou-me um beijo de cinema
com a mão. Eu estava no céu a virar-me para a fronteira.
Vi a minha querida Susie só mais duas vezes. A primeira
vez, domingo, na missa. Enquanto os nossos pais se saudavam no adro da igreja,
a Susie e eu beijávamo-nos castamente enquanto o Hernán trocava connosco um
olhar cúmplice. Nesse mesmo dia, à tarde, teve lugar a nossa cerimónia de
formatura do colégio. Mas, para nós, os dois apaixonados, com as nossas
famílias ao nosso redor, ficámos com nada mais do que uns beijinhos nas
bochechas e um abraço formal de acordo com a ocasião.
Dois dias depois, Hernán chegou a minha casa no lado
americano da fronteira. Ele tinha a cara triste e os olhos inchados de chorar.
“Vamos à colina no teu carro!” Fomos. Lá em cima, víamos as duas Nogales, uma
americana e a outra mexicana. Ele disse-me: “Já saiu! Já saiu!” Respondi: “Quem
saiu? Para onde?” Hernán disse-me: “Ela, ela, a minha irmã foi-se.” Eu
balbuciei: “O que estás a dizer-me? Saiu, saiu? Por amor de Deus, diz-me o que
se passou!”
“Pois, ninguém sabe nada disso, mas os meus pais levaram
a Susie para a Cidade do México, matricularam-na na Universidade Católica e
instalaram-na em casa da nossa tia para a proteger dos pecados da grande
cidade.” “Hernán, deixa-te dessas brincadeiras de mau gosto. Não pode ser, esta
história é de cinema, um filme de categoria B, não há nada de original nisto.
Estamos no século XX. Que barbaridade é essa? Que tipo de pessoas são os teus
pais, ditadores latinos? Diz-me, o que se passou?”
“Não, não Gerardo. Ouve-me! Ouve-me bem! Não é questão de
cultura nem de nacionalidade. É questão da fronteira onde estamos. Todos os
pais querem mandar os seus filhos para fora daqui para uma formação numa
universidade de prestígio. Lembras-te de que eu andei com a Sharon Walker há
dois anos, mas ao formarmo-nos no liceu, os pais dela mandaram-na
para a Universidade de Stanford, na Califórnia? Não é questão de ser latino ou
americano. Eu não quis matricular-me numa universidade mas o meu pai
arranjou-me uma oportunidade na tropa. No mês que vem, vou ser cadete no
Colégio Militar na Cidade do México. Daqui a uns anos posso chegar longe na
minha carreira.”
Hernán disse-me: “Desculpa, mas já se faz tarde e tenho
de me ir embora. A minha irmã queria que eu te desse isto.” Era nada mais que
uma página dobrada de um caderno escolar em que ela tinha rabiscado umas
linhas. “Meu amor, não foi por tua culpa que os meus pais me mandaram para
fora. Eles nunca deixaram de roncar naquela noite! Mas eles insistiram e, se eu
não fosse calmamente, eles estariam dispostos a forçar-me a entrar para um
convento. Amo-te. Tu tiveste-me, sou tua mulher para a eternidade. Amo-te,
querido, amo-te. Susie Nogles.”
Eu deixei cair a página e olhei para o Hernán. Ele
abraçou-me, enquanto eu chorava, mas depois de uns minutos, entre lágrimas e
ranho, eu disse-lhe: “Amigo, que mal me abraças em comparação com a tua irmã.
E, além disso, és feio, feíssimo!” Nós rimos; batemos nas costas um do outro.
Ele disse-me: “leva-me à fronteira, vou-me embora para casa. Leva-me para perto
de onde estivemos naquela noite.”
Eu levei-o pelas ruas, passeámos pelo parque de “O
Nogal”, ao lado da ponte Paz y Amistade, até chegarmos à fronteira.
Hernán desceu do carro. Vi-o separar os arames farpados com as mãos e passar
para o seu país, México. Ao vê-lo passar, tive uma visão da sua irmã, Susie, a
passar mesmo por ali com o seu vestido de gala puxado para cima em volta da sua
cintura, com as cuecas expostas à minha vista. “Que blasfémia, Gerardo!” Pensei
eu “já não imaginas estas coisas agora!” Mas, como num ato de redenção, eu
conduzi e parei debaixo de “O Nogal”. Vi, vividamente na minha memória, a luz
da lua a iluminar a cara angélica da minha querida Susie.
Uns dias depois fiz as malas e saí de Nogales
definitivamente a caminho de Phoenix, Arizona. Não quis ir para a tropa para ir
para o Vietnam; então, respondi a um anúncio do Corpo de Paz. O recrutador
perguntou-me: “que competências tens para seres voluntário humanitário?”. Eu
disse-lhe: “Pois, sou bilingue, sei muito sobre agricultura e quero salvar o
mundo do sofrimento.” Ele olhou para mim e disse-me: “Que tal, o Equador na
América do Sul? Eles precisam de peritos em agricultura.” Eu fiz um aceno com a
cabeça e ele continuou “Também lá poderás encontrar uma «Susie, Wake Up Little
Susie» ele cantou-me a sorrir. Eu rangi os dentes pela coincidência da sua
piada disparatada. Assinei o documento para aceitar a posição de três anos no
Equador. Nunca imaginei nesse momento que ia viver e trabalhar naquele
continente por mais de quatro décadas.
Anos depois, os meus pais reformaram-se e mudaram-se para
Phoenix, porque a fronteira tinha sido «endurecida» pelas autoridades da
agência de imigração americana. Escreveram-me para o Equador que tudo era muito
mais violento agora nas duas Nogales e muito menos familiar. Pouco a pouco, as
«cidades gémeas» assumiram o aspeto de uma terra de ninguém da guerra. Eu, de
reminiscência, lembrava-me da minha juventude na fronteira, pensava na
felicidade entre os dois povos e especialmente pensava em Susie e Hernán, ambos
mandados para longe da fronteira.
Tudo isso, das duas Nogales, era como um filme trágico
escrito a partir da fórmula do costume por um guionista de categoria B de
Hollywood. Tão previsível, tão trágico…uma receita de bilheteira. Mas era a minha própria
vida, era a vida do meu amor, das nossas famílias e das nossas comunidades.
Para nós não era um filme… e, para mim, era a minha querida Susie iluminada
pela luz da lua a tornar-se minha sob “O Nogal” naquela primavera nas nossas
queridas Nogales… que já não existem…já não mais….
Sim, até certo ponto, o tempo cura todas as feridas. Uns
anos depois casei-me com uma rapariga bonita e inteligente da Argentina.
Conheci-a na nossa cerimónia de formatura na Universidade Austral de Buenos
Aires. Lá, na fila, à espera dos nossos diplomas conheci-a. Era engraçada,
porque ela era de uma aldeia fronteiriça entre Argentina e Chile. Éramos «da
fronteira» e nós dois compreendíamos sem falar o que isto «da fronteira»
significava. Mas, uns anos depois, tanto ela como o nosso bebé morreram de parto
prematuro mal assistido por um médico sem recursos nessa aldeia fronteiriça
enquanto estávamos de férias de visita aos pais dela.
A nossa casa na Nordelta-Tigre nunca nos abrigou aos
três. Malditas sejam as fronteiras; malditos sejam os guiões de categoria B!
Fim